Como apresentado nas sessões anteriores, a base da estratégia do Bairro-escola – um arranjo territorial de políticas, escolas, famílias e comunidades para garantir o desenvolvimento integral de crianças e jovens – está na interrelação entre duas concepções sobre educação: a educação integral e o território educativo (Costa 2014 – Brasil Aprendiz). Mesmo que seja consenso que o Bairro-escola acontece na articulação entre a escola (como instituição, como espaço, como sujeito) e seu entorno (definido como o local onde está localizada) não existe um desenho ou definição a priori sobre os limites territoriais para o seu desenvolvimento ou mesmo para a identificação das bases necessárias para sua implantação sobretudo do ponto de vista de diagnóstico.
Nossa pergunta central é, portanto, se quando falamos sobre Bairro-escola, de que entorno territorial estamos nos referindo? Qual é a escala (ou escalas) de atuação desta estratégia? Apesar de chamar Bairro-escola, nem sempre o que está colocado é o limite do bairro propriamente dito. As experiências de Bairro-escola já realizadas mostram que em muitos casos, os limites territoriais e seus parâmetros são definidos pela prática e no processo de implantação da estratégia, e não partem, necessariamente, de um território demarcado. Mesmo quando isso ocorre, pode envolver muitas escalas ao longo de sua implementação começando em um lugar, se expandindo, ou diminuindo dependendo de como a dinâmica acontece. Em iniciativas cujos proponentes de Bairro-escola são instâncias governamentais (como é o caso das subprefeituras ou outras que tenham origem em proposições dos governos locais), a operacionalização da estratégia também pode ocorrer em formas territoriais muito distintas.
No projeto “O Centro é uma sala de aula”, realizado entre 2005 a 2008 – parceria entre a Subprefeitura da Sé da Prefeitura de São Paulo, o Aprendiz, a empresa Comgás e a Ong Casa Redonda – o ponto de partida territorial foi a região da Subprefeitura da Sé [7]. Ali o projeto buscava estimular o uso dos diversos patrimônios históricos e culturais pelas escolas da região. Depois, a iniciativa ampliou-se para as escolas da cidade toda, buscando democratizar para toda a cidade seu centro histórico. Para tanto, em uma perspectiva de cidade educadora, os equipamentos do Centro precisaram desenvolver novos procedimentos e atitudes de recepção das crianças, adolescentes e jovens e os professores precisaram reconhecer o valor deste patrimônio e a possibilidade de seus estudantes o frequentar (Goulart, 2008).
Na Barra Funda, região central de São Paulo, por exemplo, o desenvolvimento do Projeto Nossa Barra, em confluência com a Plataforma dos Centros Urbanos do UNICEF, estruturou um Grupo Articulador Local que realizou um diagnóstico sobre o território e desenvolveu um plano de ação. Neste caso o território surgiu tendo como base o entorno da empresa financiadora, a TGestiona, que criou o projeto “Cônego Convida” que levava o nome da rua onde estava. Depois, o território se expandiu para outros bairros e distritos próximos, tendo como base a localização das organizações participantes da rede que se formou.
No projeto Pró Bairro-Escola Sonho Azul, iniciado em 2007 em M’Boi Mirim, zona sul de São Paulo, o entorno da Escola Municipal de Educação Infantil Sonho Azul – catalisadora das articulações comunitárias e dos potenciais educativos locais para a promoção das condições de vidadas crianças – , constituiu o território inicial do Bairro-escola. Ali foram feitas intervenções artísticas que chamaram atenção das lideranças comunitárias e dos moradores do local. Com o tempo, constituiu-se um grupo articulador local, com a participação de pessoas ligadas a associações de moradores de diversos bairros. Depois, com a Plataforma dos Centros Urbanos, mobilizada pela Unicef, este grupo uniu-se a outro, também composto principalmente por pessoas ligadas a outras associações de bairro e, assim, ampliou-se o raio do Bairro-escola, que passou a incluir diversos bairros e vilas, na região que recebe o nome de Fundão do Jd. Ângela.
Na Barra Funda, região central de São Paulo, por exemplo, o desenvolvimento do Projeto Nossa Barra, em confluência com a Plataforma dos Centros Urbanos do UNICEF, estruturou um Grupo Articulador Local que realizou um diagnóstico sobre o território e desenvolveu um plano de ação. Neste caso o território surgiu tendo como base o entorno da empresa financiadora, a TGestiona, que criou o projeto “Cônego Convida” que levava o nome da rua onde estava. Depois, o território se expandiu para outros bairros e distritos próximos, tendo como base a localização das organizações participantes da rede que se formou.
No projeto Pró Bairro-Escola Sonho Azul, iniciado em 2007 em M’Boi Mirim, zona sul de São Paulo, o entorno da Escola Municipal de Educação Infantil Sonho Azul – catalisadora das articulações comunitárias e dos potenciais educativos locais para a promoção das condições de vidadas crianças – , constituiu o território inicial do Bairro-escola. Ali foram feitas intervenções artísticas que chamaram atenção das lideranças comunitárias e dos moradores do local. Com o tempo, constituiu-se um grupo articulador local, com a participação de pessoas ligadas a associações de moradores de diversos bairros. Depois, com a Plataforma dos Centros Urbanos, mobilizada pela Unicef, este grupo uniu-se a outro, também composto principalmente por pessoas ligadas a outras associações de bairro e, assim, ampliou-se o raio do Bairro-escola, que passou a incluir diversos bairros e vilas, na região que recebe o nome de Fundão do Jd. Ângela.
Em Recife, o Programa Bairro-Escola foi desenvolvido por meio de uma parceria entre a Secretaria Municipal de Educação, Esporte e Lazer (SEEL) o Instituto Avon e o Aprendiz. A fase piloto do Programa, em 2009, aconteceu em dois territórios da região central da cidade, onde as escolas e as jovens lideranças estruturam um grupo articulador que realizou diversas ações com o objetivo de integrar a escola à comunidade. Depois, para a expansão do Bairro-escola para toda a cidade, a SEEL articulou três outros programas, voltados para a ampliação da jornada escolar e para a abertura das escolas às comunidades nos finais de semana. Os coordenadores destes programas nos territórios passaram a estimular a criação dos grupos articuladores locais, encarregados do diagnóstico participativo e da elaboração de planos de ação.
Como mostram os exemplos, nas experiências realizadas de implantação da estratégia de Bairro-escola, as referências territoriais e suas nomenclaturas podem variar muito: um bairro, uma comunidade, uma favela, uma metrópole. São inúmeras as formas como o território aparece descrito nesses relatos: bairro educador, bairro-escola, cidades educadoras, comunidades educadoras, território educativo, espaços educativos, comunidade, entorno, contexto, microterritórios, dimensão hiper-local, regiões. Na prática, todas essas nomenclaturas funcionam. Mas o que de fato estão querendo dizer? O que está por trás desses nomes? Quando dizemos cidade educadora estamos de fato pensando na cidade como um todo? Ou estamos nos referindo a “pedaços das cidades”, numa escala mais pertinente ao desenvolvimento do Bairro-escola? Em territórios não urbanos, como essa dimensão poderia ser trabalhada?
A imprecisão deste desenho territorial, no entanto, não acontece à toa e tampouco denota qualquer tipo de fraqueza ou incoerência do ponto de vista conceitual. Ao contrário, ela é reveladora de um aspecto importante da perspectiva territorial que se coloca em questão que é o de justamente se desenhar a partir da experiência da vida das pessoas, instituições e todos envolvidos e na relação que estabelecem com o espaço em questão, e não partindo de um desenho dado à priori.
Na busca de bases para essa discussão, procuramos ver como é pensado o território de acordo com a Carta das Cidades Educadoras e o programa federal Mais Educação – referências importantes no contexto do Bairro-escola. O primeiro constitui um dos documentos base do conceito de território educativo (movimento de cidades educadoras que se iniciou na Espanha na década de 1990 e que serve como inspiração para a metodologia e concepção de Bairro-escola) e o segundo, uma política pública de âmbito nacional que “constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para induzir a ampliação da jornada escolar e a organização curricular na perspectiva da Educação Integral” (Ministério da Educação:2013).
Na Carta das cidades educadoras o limite territorial, ou aquilo que se compreende por cidade é o limite do município. Ou seja, a instância responsável pela concepção e prática dos princípios que regem esta estratégia é administração municipal, como fica claro no trecho a seguir:
“O papel da Administração Municipal é, por um lado, obter as disposições legislativas provenientes da Administração Central e Regional e, por outro lado, estabelecer as políticas locais que se revelem possíveis; ao mesmo tempo estimulando a participação dos cidadãos no projecto colectivo, a partir das instituições e organizações civis e sociais ou de outras formas de participação espontânea” (Carta das Cidades Educadoras – princípio 2). E ainda: “A satisfação das necessidades das crianças e dos jovens, no âmbito das competências do município, pressupõe uma oferta de espaços, equipamentos e serviços adequados ao desenvolvimento social, moral e cultural, a serem partilhados com outras gerações. O município, no processo de tomada de decisões, deverá ter em conta o impacto das mesmas” (Carta das Cidades Educadoras – princípio 7).
O Programa Mais Educação, que “viabiliza nas escolas públicas municipais e estaduais que a ele aderem por opção recursos para estruturar projetos que incluem atores e espaços das comunidades nas áreas de acompanhamento pedagógico, meio ambiente, esporte e lazer, direitos humanos, cultura e artes, cultura digital, prevenção e promoção da saúde, educomunicação, educação científica e educação econômica” (Cidade Escola Aprendiz – caderno Brasil) também tem como escala operacional o nível do território.
No Mais Educação, os territórios se constituem a partir do cotidiano das crianças e adolescentes e dos seus acessos a oportunidades de aprendizagem. Partindo das escolas, os territórios perpassam os serviços, programas, projetos e equipamentos das políticas de educação, cultura, assistência social, esporte, meio ambiente e ciência e tecnologia. Assim, mesmo que o programa se estruture em torno de uma política municipal ou estadual de educação, o centro de sua operação é a escola (os recursos vão direto para essa instituição) e, como o seu princípio central é a ampliação da jornada escolar, impõe ao mesmo tempo, utilização de outros espaços para além da escola, com uma visão sobre o seu entorno.
Essas duas fontes inspiradoras nos chamam a pensar o território do Bairro-escola sempre a partir dessa relação entre a escola e o seu entorno, ainda que sob a gestão do município. Mas essas mesmas experiências nos informam que esse parâmetro não pode ser estanque, ou seja, não pode engessar algo que não é engessável por princípio, correndo o risco de criar uma estratégia equivocada para esse fim. Nossa tentativa, portanto, não é encontrar uma definição fechada, mas tentar definir o que é comum em todas essas experiências e que possa nos guiar nas próximas que virão. Além disso, é necessário construir um debate ainda pouco explorado sobre os limites territoriais necessários para o empreendimento de ações voltadas ao desenvolvimento integral de crianças e adolescentes e jovens e, sobretudo, para o reconhecimento deste território do ponto de vista do diagnóstico, objetivo desta reflexão.
É essencial a problematização sobre a escala de observação no caso do Diagnóstico do Bairro-escola. Partimos do princípio que recortar o território seguindo qualquer tipo de lógica produz em si mesmo muito significado, e influencia profundamente as relações sociais que se quer observar. De acordo com o sociólogo Boaventura de Sousa Santos “a escala é o primeiro grande mecanismo de representação/distorção da realidade” (Sousa Santos, 2007: 202). Ainda segundo esse autor “Um dado fenômeno só pode ser representado numa dada escala e, em muitos casos, mudar de escala implica mudar o fenômeno. Tal como na física nuclear, a escala cria o fenômeno” (idem).
Ao refletirmos sobre o território no Bairro-escola, nos guiamos pelas seguintes questões: Qual é o desenho territorial que é capaz de potencializar uma forma de olhar a favor da estratégia Bairro-escola? Qual deve ser o contorno do território do Bairro-escola para fins de diagnóstico das condições para o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens? É possível pensar em um limite territorial mínimo? Até onde o limite deve ir? Existe um limite máximo? Por conta da necessidade de obtenção de dados, esse desenho deve ter diálogo com as divisões formais/administrativas do território. Que diálogo é esse? Existe a possibilidade de se pensar em uma delimitação territorial universal ou padrão para todos os processos de diagnóstico e implantação do Bairro-escola?
Para prover uma leitura do território capaz de nos trazer à tona o conhecimento a respeito das condições que possibilitam o desenvolvimento integral das crianças, adolescentes e jovens é preciso adotar uma perspectiva que, de um lado, rompa com a ideia de descrever territórios por meio de seus conteúdos (como meros receptáculos, cenários sobre os quais se organizam as relações sociais) e, de outro, busquem a aproximação do olhar ao cotidiano, à vivencia das pessoas que constroem esses espaços. Essa perspectiva acompanha os debates recentes sobre as concepções em torno de território e a sua interface com o desenho de políticas públicas setoriais que entendemos ser o centro da questão e sobre os quais fizemos um relato breve no início deste capítulo.
Nossa aproximação ao conceito de território parte do princípio de que, ao nos referirmos ao espaço usado pelas pessoas, estamos tratando, ao mesmo tempo, de conteúdo, de meio e processo das relações sociais. De acordo com o geógrafo brasileiro Milton Santos, o território, inclusive, não deve ser tratado em si mesmo como um conceito, sendo que o maior exercício deve ser feito em relação ao uso que se faz dessa noção. O autor afirma que : “O território em si, pra mim não é um conceito. Ele só se torna um conceito utilizável para a análise social quando o consideramos a partir do seu uso, a partir do momento em que o pensamos juntamente com aqueles atores que dele utilizam” (Santos, 2000:22). Seguindo esta lógica, para o nosso objeto de trabalho, é fundamental, em primeiro lugar, contrastar a visão topográfica e burocrática (forma tradicional) que entende o território como espaço físico geopolítico com aquela que é capaz de compreendê-lo como produto da dinâmica social onde tencionam sujeitos sociais (Gondim et all, 2008).
Essa noção de território – o território usado – remete a uma construção feita por meio da relação entre o mesmo e as pessoas que dele se utilizam (Koga, 2011: 35). Ele é construído a partir dos percursos diários trabalho-casa, casa-escola, das relações que se estabelecem no uso dos espaços ao longo da vida, dos dias, do cotidiano das pessoas e não por nenhuma estrutura anterior a esses processos. O cotidiano das pessoas (e sua relação com o local) assim, é elemento intrínseco ao processo de construção e reconstrução do território: “Na vida de todos os dias, a sociedade global vive apenas por intermédio das sociedades localmente enraizadas, interagindo com seu próprio entorno, refazendo todos os dias essas relação e, também, sua dinâmica interna, na qual, de um modo ou de outro, todos agem sobre todos” (Santos, 2000:122).
Em função disso, a identidade ou o “sentimento de pertencer àquilo que nos pertence” (Santos. 2005:97), é elemento central na concepção de território já que é o “fundamento do trabalho; o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida” (Santos. 2002:10). Porque é calcado na experiência das pessoas e naquilo que exercem e projetam sobre os lugares é que o território ao mesmo tempo “envolve dimensões concretas, materiais (as próprias experiências vividas), como também as dimensões idealistas, de representação do espaço em que se vive” (Koga, 2011:37).
Assim como as relações identitárias, as relações de vizinhança – que são centrais para se pensar em fortalecimento de vínculos sociais e também proteção social (Koga e Nakano, 2006) – incidem fortemente na distribuição das pessoas sobre o território (Santos, 2008, p. 173 apud Koga e Nakano, 2006). Essas relações também vão pautar a interação entre a população e os serviços no nível local que ocorrem nos territórios (Gondim et all, 2008). Nosso argumento central (que segue raciocínio de Dirce Koga) é o de que a visão sobre essa complexidade em torno do território enriquece o campo das políticas públicas ultrapassando a segmentação de demandas (a partir de uma visão sobre a vida não se pode separar as esferas de atuação) e focalização de ações (ações voltadas a grupo alvo).
Para pensar o território no âmbito da atuação do Bairro-escola e tendo como foco o conhecimento das condições que possibilitam o desenvolvimento integral das crianças, adolescentes e jovens essa perspectiva sobre o território é ponto de partida. Sua conceituação, no entanto, não é nada simples. A nosso ver, a dimensão territorial para o Diagnóstico do Bairro-escola é influenciada, ao mesmo tempo, pelas divisões administrativas (que organizam nossos espaços do ponto de vista das políticas) – municípios, distritos – ainda que rompam com elas, pela organização territorial das escolas já que estão em diálogo com elas e pela lógica de vida das pessoas. Além disso, o recorte deve ser elástico o suficiente para não quebrar ou distorcer lógicas do território que sejam caras ao Bairro-escola, o que faz com que deva poder ser periodicamente refeito caso se perceba que está perdendo o sentido. Com base nessa discussão, elencamos alguns princípios norteadores para essa delimitação. São princípios gerais que devem servir para futuras aplicações e revisões dessa metodologia.
(i) O olhar para o microterritório
O princípio norteador central do conceito de território para o diagnóstico do Bairro-escola é o olhar para o microterritório. Entendemos que é a partir deste recorte que se consegue a aproximação com a dimensão da vida das pessoas, das relações estabelecidas pelos sujeitos em seu cotidiano de vivência, que é o foco desta estratégia. Este é o espaço em que cada um costuma circular para ir à padaria, ao supermercado, passear na praça, fazer suas atividades cotidianas relacionadas a trabalho, lazer, etc. Um território que se faz a pé, que se conhece as calçadas, as pessoas, os muros, as árvores.
De acordo com o antropólogo José Guilherme Magnani no debate que realiza em torno do conceito de pedaços, manchas e trajetos urbanos, propõe-se “variar o ângulo, olhar desde outro lugar, apreciar a cidade do ponto de vista daqueles que, exatamente por causa da diversidade de seu modo de vida, se apropriam dela de forma também diferenciada. Estas formas de apropriação não são o resultado de escolhas individuais, nem são aleatórias: são resultado de rotinas cotidianas, ditadas por injunções coletivas que regulam o trabalho, a devoção, a diversão, a convivência e que deixam suas marcas no mapa da cidade. O resultado é um desenho bastante particular e que se sobrepõe ao desenho oficial da cidade: às vezes rompe com ele, outras vezes o segue, outras ainda não tem alternativa senão adequar-se” (Magnani 1993).
Nesse trecho estão colocados os dois desafios principais em relação à aproximação com o microterritório: de um lado, a captura desses territórios de pertencimento, de identidade e, de outro, a tentativa de romper com o eixo cadastral ao qual submetemos nossa forma de olhar a cidade (esse “desenho oficial”) já que a vida das pessoas é mais do que um endereço localizado (Spozati, 2000). Além disso, acreditamos que é esse micro que informa sobre o todo da cidade (e não o contrário) e é nessa dimensão que pautamos as políticas públicas na forma como ela chega no território, como se materializa na vida das pessoas.
Mas qual o tamanho desse microterritório? Ele é passível de uma operacionalização enquanto delimitação do espaço? Essa delimitação precisa é difícil de alcançar como argumenta Aldaiza Spozati: “Via de regra se tem uma representação da cidade a partir do trajeto da circulação entre o bairro onde se mora e aquele onde se trabalha, estuda ou mantém vínculos de amizade, culturais e afetivos. A visão da totalidade de uma cidade é, quando muito, enquistada em órgãos técnicos das prefeituras. Agregar partes e todo enxergando diferenças é algo de difícil aquisição” (Spozati, 2000: 3).
Não estamos acostumados a pensar em microterritórios, muito menos do ponto de vista operacional, de gestão. Até 1995 não havia nenhum estudo que considerasse a desagregação geográfica da cidade de São Paulo. A divisão em distritos, por exemplo, foi sancionada em 1991, recentemente. Mesmo assim, a maioria dos distritos de São Paulo é de porte das cidades médias brasileiras (100 a 200 mil habitantes), ou seja, não se aproximam de uma visão micro da cidade. Os distritos representam verdadeiras cidades mesmo que estejam submetidos a um governo central, a prefeitura do município. Isso reflete também as inúmeras lógicas territoriais que operam na cidade, inclusive com diversos bancos de dados, cadastros e malhas urbanas existentes e simultâneos que são também desconectados.
Refletindo sobre as menores divisões oficiais possíveis da malha urbana de São Paulo, existem 38 administrações regionais, 96 distritos, 270 zonas origem-destino (áreas utilizadas pelo Metrô), 309 setores fiscais, 461 paróquias, 1489 bairros, 13.120 setores censitários, 45 mil quadras, 46 mil logradouros (ruas), 2.500.000 lotes de IPTU, 3.551.000 domicílios (Koga, 2011). Isso sem contar as 19 áreas de gerência da Sabesp, 93 distritos policiais, 41 zonas eleitorais, (idem), 13 diretorias regionais de ensino da rede municipal, outras 13 diretorias regionais de ensino da rede estadual e assim por diante. Algumas essas divisões fazem sentido para pensar nos territórios do Bairro-escola? De qual delas queremos nos aproximar?
Nos inspirando na própria nomenclatura da estratégia, nos acercamos, a primeira vista, da noção de bairro. A divisão da cidade em bairros não é regulamentada do ponto de vista administrativo oficial [8] e, numa cidade como São Paulo onde existem 1489 bairros registrados, tampouco pode se aproximar da escala micro no ponto que desejamos: o que é o bairro de Pinheiros, por exemplo? Quantos microterritórios podem estar incluídos neste espaço? No entanto, quando falamos “meu bairro” sempre atribuímos uma ideia de familiaridade ou proximidade em uma parte do conjunto da cidade, sobretudo uma cidade como a nossa que não permite qualquer tipo de identificação, tamanho o gigantismo. Ou seja, o sentido que está por trás da ideia de bairro e não o seu traçado na cidade (ou a divisão que produz) é o que nos interessa: essa ideia de uma vida em comunidade mesmo que seja somente no plano da utopia.
Portanto, a divisão territorial dos bairros serve como um ponto de partida importante para esta delimitação territorial, mas entendemos que o uso desta noção está relacionado mais ao seu conteúdo teórico – situando-se entre o ideal genérico da vida social comunitária e o caos da cidade moderna (Gravano, 2005) – do que operacional.
De acordo com Gravano (2005) a ideia de bairro surge com a necessidade de nomear uma situação de diferenciação e desigualdade dentro do todo (macrounidade) da cidade. Ou seja, é um indicador de segregação no uso do espaço urbano por distintos atores sociais sendo que aqui estamos entendendo a segregação como a distinção de uma parte em relação ao todo. A noção de bairro também é utilizada pela necessidade de expressar determinados valores que fazem a convivência e a qualidade de vida urbana em comunidade e revela tanto os aspectos considerados negativos da cidade moderna como as utopias e mudanças desejadas e possíveis de imaginar e implementar.
Esse é o sentido que queremos preservar, tomando os devidos cuidados para nos distanciar da ideia de que esse micro corresponde a um espaço homogêneo. A valorização da dimensão hiperlocal respeita essa dimensão cotidiana, do espaço de vida, mas não deve ser confundida com a ideia de que no espaço ocorre qualquer tipo de coesão (não é porque é micro que é homogêneo), como os resultados da pesquisa serão capazes de revelar.
(ii) Alcançar condições territoriais que possibilitem o desenvolvimento integral de crianças e jovens
Um segundo princípio norteador da visão territorial do Diagnóstico do Bairro-escola é a aproximação da rede socioassistencial de proteção voltada a criança, o adolescente e o jovem. De acordo com documento do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) a “proteção social é um importante instrumento de política pública para enfrentar a exclusão social, a desigualdade e a pobreza. Ela abrange tanto o seguro social como a assistência social. A última pode ser proporcionada na forma de manutenção da renda e/ou em transferências em espécie bem como em serviços sociais” (PNUD:2013).
A caracterização desta rede de proteção deve ser feita a partir de um olhar que integre os direitos das crianças, adolescentes e jovens com o processo de educação integral, ou seja, do ponto de vista de seu potencial educativo ou diversificação das oportunidades educativas. Está no centro da estratégia do Bairro-escola a articulação e imbricamento destes aspectos.
Ao falarmos de rede socioassistencial e intersetorial, estamos nos referindo aqui a organizações não governamentais, instâncias e serviços do governo dos mais diversos setores como Saúde (Ama, UBS, hospital, etc.), Assistência social (CRAS, conselhos tutelares, etc.), Cultura (museus, bibliotecas, centros culturais, pontos de cultura, telecentros, etc.), Esporte (quadras, centros poliesportivos), Educação (clubes-escola, escolas, centros de pesquisa), Justiça, Segurança, praças, parques. Uma definição importante da ideia de equipamento social encontra-se em Érnica e Batista (2012: 650): “Entende-se por equipamento da área social uma instituição público-estatal, privada ou do terceiro setor cujo objetivo é contribuir para a realização de um direito social” [9]
Uma primeira questão que se coloca sobre o reconhecimento da rede socioassistencial no território é que a ideia de proteção social básica não está vinculada necessariamente a uma base territorial. Ou seja: a busca por esse “círculo protetivo mínimo” nem sempre se materializa num espaço físico concreto que seja passível de captação por meio de instrumentos de pesquisa.
A assistência social é uma política em construção e em processo de afirmação. A territorialização desta política – tal como ocorre na saúde, por exemplo a partir de uma lógica organizacional representativa com base em critérios populacionais, etc. – ainda está em processo e não ocorre da mesma forma. Tampouco existe essa ideia de que a proteção social deve estar materializada num território mesmo que a política pressuponha a existência de equipamentos públicos de assistência nos diversos espaços da cidade. Além disso, a política de assistência entende que a proteção social acontece por meio de diversos mecanismos como as relações de vizinhança, as relações familiares, etc. para além, dos serviços, equipamentos e da própria dinâmica da política.
Ainda, as ações dos equipamentos ou instituições que fazem parte do que se entende como rede socioassistencial voltada à criança e o adolescente são equipamentos cujas ações estendem-se muito além da atuação junto à crianças e adolescentes. É o caso das Unidades Básicas de Saúde (UBS), do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), das igrejas, e assim por diante. A perspectiva da educação integral busca fazer com que estes equipamentos se reconheçam e sejam reconhecidos como agentes educativos.
Assim, é importante pensar na organização dessas instâncias sob dois prismas: o primeiro é daquelas que atuam de modo ampliado no território e que, entre outras atividades/serviços, contemplam entre o seu público, as crianças e adolescentes. O segundo seria composto por aquelas que possuem, no rol de suas ações, atividades específicas para crianças e adolescentes e, ou, são capazes de articular essas atividades como, por exemplo, os CRAS (Centro de Referência de Assistência Social). Estes equipamentos não atendem somente crianças, mas podem providenciar sua inserção em grupos socioeducativos realizados ali mesmo ou em outras instituições.
Certamente, os serviços de saúde presentes em um território são fundamentais na garantia do direito à saúde de crianças e adolescentes, o que engloba imunização, consultas, prevenção a DST, etc. A UBS, com os agentes da saúde e o programa Saúde da Família podem desenvolver ações que colaboram diretamente para o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens mesmo que o contato e as tentativas de articulação com esse público sejam mais pontuais, episódicas. No entanto, para instituições que tenham como foco atividades socioeducativas, por exemplo, como um museu com atividades específicas para crianças e adolescentes, ou os grupos socioeducativos para crianças e adolescentes articulados por um CRAS, deve haver um esforço maior de articulação e mobilização para a integração na rede de proteção integral. Torna-se um objetivo central do diagnóstico, portanto, reconhecer e identificar claramente, quais são os pontos da rede que revelam instituições deste tipo.
Assim, a caracterização dessa rede, do ponto de vista do diagnóstico, deve partir de algumas premissas centrais.
1. É necessário fazer um levantamento da rede socioassistencial do ponto de vista da produção de conhecimento, investigando todas as formas sob as quais ela se coloca. É possível saber dos ativos do território antes de entrar nele mesmo que essa informação seja completada a posteriori.
2. É necessário captar serviços e políticas que não estão territorializados (do ponto de vista físico) ou que não se encontram no território específico em questão, mas que incidem no mesmo.
3. Do ponto de vista do potencial educativo da rede, é necessário acessar os equipamentos e ativos que não necessariamente se reconhecem como educativos e, nos “mais óbvios” (equipamentos particularmente voltados ao público infanto-juvenil). Nessa visão, o desafio é, portanto, ir além da proteção.
(iii) Crianças, adolescentes e jovens que estudam e crianças, adolescentes e jovens que moram nos territórios
A dimensão territorial deve ter como foco as crianças e jovens que vão ser impactados pela estratégia do Bairro-escola. Assim, delimita-se que se tratam dos jovens que estudam no território (nas escolas fisicamente instaladas no mesmo) e também aqueles que moram nestes lugares (que podem estudar em outros locais ou que já não estão mais em idade escolar). Quando falamos do entorno da escola, portanto, estamos falando de quem vive e circula nesse local cotidianamente, sendo que não necessariamente precisam morar ali.
(iv) A escola tomada como elemento central do território
A escola deve ser o ponto de partida para definição territorial do Bairro-escola já que:
– A escola é a referência para público alvo da estratégia do Bairro-escola. Assim, ainda que a(s) escola(s) não seja(m) a(s) única(s) ou exclusiva(s) parceira(s) nas ações desenvolvidas pelo Aprendiz nos territórios, constata-se a sua posição privilegiada enquanto local para onde convergem seus sujeitos em foco.
– “A educação é uma das políticas sociais de maior alcance populacional e territorial, abrangendo regiões não atendidas por nenhum outro equipamento público, que não uma escolar” (Grinkraut, 2013 – Ação Educativa). Em São Paulo esse atendimento educacional é realizado pelas redes públicas – municipal, estadual e federal – e por escolas privadas e “apresenta uma enorme desigualdade (distribuição desigual de equipamentos públicos de educação pelo município com maior concentração da oferta no centro da cidade em prejuízo das periferias, que apresentam um atendimento – em geral – de mais baixa qualidade para as populações pobres” (Carreira: 2013 – Ação Educativa).
– Assim, devido a sua capilaridade no território da cidade, as escolas são o grande equipamento público-estatal de referência para as famílias sobretudo em locais onde não há outros equipamentos existentes.
– Se, por um lado, essa situação pode representar ao Estado uma proximidade muito grande com a população, independentemente de onde vive e das condições econômicas que possui; essa situação, no entanto, depende de como as políticas educacionais dialogam com outras políticas, de forma a não somente garantir o acesso à educação, mas também viabilizar estratégias para a melhoria das condições de vida da população, bem como o acesso à cultura, esporte e lazer.
– “os problemas inerentes à vulnerabilidade social se manifestam nas escolas das famílias e do território se manifestam nessas escolas, chamando-as a um posicionamento sem que elas tenham recursos para fazer frente a esses desafios, o que termina por bloquear as condições de realização das atividades propriamente escolares” Érnica e Batista (2012: 650). Exemplos: “Os dados mais contundentes a esse respeito referem-se ao isolamento da escola em relação a outros equipamentos da área social em situações emergenciais, como, por exemplo, naquelas em que a população é vitimada pelas enchentes na região e as escolas são usadas em seu socorro. Outros episódios são aqueles em que conflitos que se dão fora da escola acabam por repercutir em ocorrências de violência no interior da escola, como em casos de vingança ou de acertos de contas entre indivíduos ou grupos rivais. Porém, os educadores relatam ainda episódios de dificuldades para lidar com alunos que vivem em situações limite produzidas pela violência, pela precariedade das condições de saúde ou de habitabilidade de seus lares. Em todos esses casos, a escola precisa lidar com essas necessidades, sem poder contar com o apoio de uma rede de serviços públicos bem estruturada e facilmente acessível”.
(v) Princípio da replicabilidade, ou seja, deve servir para diferentes contextos.
Trata-se de um princípio central nesta definição. Consideramos que esses princípios da definição territorial para o Bairro-escola devem ultrapassar a metodologia deste diagnóstico, servindo como parâmetro para outros projetos e processos em contextos distintos. Para tal, em cada caso é necessário fazer uma reflexão sobre os sentidos territoriais das experiências e, preservando os princípios aqui descritos, adequar a leitura do território