O Bairro-escola é um sistema de aprendizagem compartilhada entre escolas, comunidades, poder público, empresas e organizações sociais, que visa o desenvolvimento integral de indivíduos e seus territórios, com especial atenção às crianças, adolescentes e jovens. Esta visão dialoga com a perspectiva do que vem sendo chamado no Brasil de educação integral [1].
A educação integral propõe o desenvolvimento dos indivíduos em todas as suas dimensões – intelectual, afetiva, física, social e simbólica – por meio da da integração dos diversos espaços e agentes de um território.Compreende-se que para tão complexa tarefa, é necessária a integração de todos esses agentes em torno de um projeto comum, um projeto que possa transformar territórios em territórios educativos.
Território é aqui compreendido na perspectiva apresentada na sessão 4.4 desse documento: produto da dinâmica social onde tencionam sujeitos sociais; uma apropriação no sentido simbólico, um domínio no sentido político-econômico, um espaço socialmente partilhado; uma construção a partir dos percursos diários trabalho-casa, casa-escola e das relações que se estabelecem no uso dos espaços ao longo dos dias e das vidas das pessoas. Na perspectiva do Bairro-escola, um território torna-se educativo quando quatro condições são alcançadas:
- Em primeiro lugar, é preciso que exista ali um fórum intersetorial (formado por representantes do poder local, da iniciativa privada e sociedade civil organizada), interdisciplinar (educação, saúde, cultura, rede de garantia de direitos, desenvolvimento local etc.) e intergeracional (crianças, jovens e adultos) dedicado a formular e gerir um Plano Educativo Local (PEL).
- Em segundo lugar, é importante que as escolas desenvolvam projetos político-pedagógicos democráticos, alinhados com os princípios da educação integral. Que elas reconheçam os saberes comunitários, se envolvam com as problemáticas locais e promovam a apropriação da cidade.
- A terceira condição é a de que a rede intersetorial da educação integral (educação, assistência, saúde, justiça) trabalhe de forma integrada, compartilhando dados e agendas, alinhando princípios e construindo estratégias comuns para o trabalho, Por fim, configura-se um território educativo quando há o reconhecimento e o exercício do potencial educativo de seus diversos agentes, ampliando e diversificando as oportunidades para todos: um restaurante cede espaço para cursos de informática em que adolescentes ensinam idosos; museus criam programações voltadas para públicos específicos do bairro, sejam crianças pequenas, imigrantes ou pessoas com deficiência; criam-se espaços de cultura geridos pela comunidade em escolas públicas; uma praça é revitalizada com intervenções criativas dos artistas e depois passa a ser utilizada para atividades de skate, malabares, horta, basquete, mostras e shows.
Considerando estas as condições para a constituição de um território educativo, o Bairro-escola disponibiliza um conjunto de ferramentas que possibilita a sua construção, sempre de forma participativa e com base no levantamento contínuo e reflexivo de dados e problematizações.
Em linhas gerais, o processo de implementação das ferramentas disponibilizadas pelo Bairro-escola pode ser descrito em três etapas.
A etapa inicial é marcada pelo conhecimento do território e a sensibilização dos atores-chave para a questão do desenvolvimento integral das crianças, adolescentes e jovens do território. Localiza-se nesta etapa o Diagnóstico do Bairro-escola porque, com ele, pode-se:
1. Conhecer as instâncias de participação que têm pautas relacionadas à infância, adolescência e juventude e aquelas que possuem crianças, adolescentes e jovens na sua composição.
2. Conhecer as condições das escolas para o desenvolvimento integral.
3. Conhecer as condições da rede intersetorial para a educação integral.
4. Conhecer como vivem e pensam as crianças, adolescentes e jovens do território.
Trata-se de conhecer como vive esta faixa populacional ali, quais são as condições das escolas para desenvolver projetos político-pedagógicos (PPP) alinhados com os princípios da educação integral, quais são as condições da rede sociopedagógica para atuar de forma interdisciplinar e intersetorial e qual é o nível de diversificação das oportunidades educativas no território.
Ao envolver estes agentes no processo de diagnóstico, também se inicia o processo de sensibilização para o tema, na medida em que ganham visibilidade aspectos que antes eram ignorados e negligenciados. Processos formativos específicos também podem ser empreendidos nesta etapa com o objetivo da sensibilização.
A etapa intermediária caracteriza-se pelo desenvolvimento de ações em parceria entre os agentes dos diversos setores, orientadas pelos princípios da educação integral. Tendo como base a sistematização da leitura compartilhada dos resultados do diagnóstico, trabalha-se, então, com as linhas priorizadas pelos participantes, com vistas à conquista do território educativo. Nesta etapa, também são empreendidos processos formativos dos agentes envolvidos, com o objetivo de instrumentalizá-los na metodologia do Bairro-escola. Para mobilizar mais agentes e divulgar os processos, são realizadas intervenções nos espaços das escolas e do território, conferindo visibilidade à proposta, e são desenvolvidos canais de comunicação variados. As oportunidades educativas do território são divulgadas e fortalecidas, bem como todos os espaços de participação relacionados com o desenvolvimento integral das crianças, adolescentes e jovens dali. É nesta etapa que se constitui o fórum responsável pela construção do Plano Educativo Local (PEL), que definirá as metas a serem atingidas para que o território se torne educativo, prevendo as estratégias e responsabilidades de cada agente envolvido.
Quando o território está na etapa avançada do processo de se tornar educativo, as escolas do lugar realizam PPPs democráticos orientados pela educação integral, o PEL orienta as estratégias intersetoriais da rede sociopedagógica, as políticas públicas voltadas para a infância, adolescência e juventude se efetivam em diálogo com as condições locais, os processos de tomada de decisão são efetivamente participativos. Nesta fase, as ferramentas disponibilizadas pelo Bairro-escola referem-se, sobretudo, à sistematização e divulgação de processos e resultados e à consolidação de espaços e fóruns, de modo a possibilitar a sustentabilidade de todo o projeto.
A seguir detalhamos um pouco mais os elementos que constituem um território educativo na perspectiva da tecnologia do Bairro-escola.
O desenvolvimento integral e a caracterização das condições de vida no território
O Bairro-escola tem como objetivo maior criar no território as condições para que os jovens se desenvolvam integralmente, ou seja, em todas as suas dimensões – intelectual, física, afetiva, social, simbólica. Para criar metas para alcançar esse resultado e monitorar esse processo, é preciso conhecer as condições de vida das novas gerações no território.
Em um território educativo estão garantidas as condições para a formação de cidadãos autônomos, com a ampliação do seu repertório sociocultural e o fortalecimento da sua capacidade associativa e de participação ativa na sociedade. Um cidadão pleno de direitos e participante ativo nas decisões que afetam sua comunidade constitui-se com base no desenvolvimento de seu corpo, de sua singularidade, de sua capacidade reflexiva e de suas habilidades para a comunicação e a criação.
Por isso as condições de vida das crianças, adolescentes e jovens de um território precisam ser conhecidas no início do processo de construção de um Plano Educativo Local. Segundo o sociólogo e professor Miguel Arroyo, as vivências dos tempos-espaços são centrais nos processos de socialização, humanização, formação e aprendizagem do próprio viver (Arroyo, 2012: 33-45). Ao levarem em consideração as dimensões vida-corpo-espaço-tempo, propostas orientadas pela educação integral precisam partir da investigação de “como os educandos vivem a vida” e a que vivências são submetidos nos diversos espaços e tempos e na totalidade de seu viver.
Um projeto de educação integral não separa o corpo do pensamento. O corpo precisa ser mobilizado para que o conhecimento aconteça. É na relação entre o corpo e o ambiente em constante experiência exploratória, uma experiência que modifica a ambos continuamente que se dá o conhecimento. As pessoas, aprendendo a controlar as interações de forças do corpo em seu meio ambiente, estabelecem relações cognitivas e sociais. A cognição corporificada coloca a motivação no centro do processo: é preciso desejar, ter alguma necessidade, para se mover (Saito, 2010). Um território educativo oferece as condições necessárias para, nas palavras de Arroyo, “um justo e digno viver” – ambientes saudáveis, espaços próprios para o exercício motor, segurança, asseio, acessibilidade, serviços de saúde, condições de moradia adequadas, entre outros pontos de fundamental importância. Porém, mais do que isso, um território educativo efetivamente oferece as condições para que as pessoas desejem aprender, conhecer o mundo, se desenvolver.
A perspectiva da educação integral também não separa a capacidade de criar dos afetos, a base para o desenvolvimento de uma individualidade plena, em contato consigo mesma e com o mundo. A criação de símbolos se dá a partir de sensações e sentimentos, promovendo a integração física, afetiva, intelectual e social. Com o psicólogo americano Howard Gardner, aprendemos que o pensamento intuitivo e simbólico, normalmente desprezado nos ambientes escolares em favor da primazia do pensamento lógico-matemático, é uma das formas de compreender o mundo (Gardner, 1994). Os processos simbólicos manifestam a capacidade para perceber diferenças e singularidades, expressar, relacionar, ritualizar e criar os distintos aspectos da vida. O impulso criativo vem de cada um, da sua curiosidade, sua capacidade de se emocionar, compreender e desejar. Do ponto de vista psicocognitivo, os processos simbólicos se articulam intrinsecamente com o desenvolvimento corporal e intelectual, podendo-se mencionar, especificamente, a importância do desenho para a elaboração da noção de espaço, a manipulação de instrumentos para a estruturação de conceitos geométricos, e os jogos para as habilidades de abstração e comunicação. Ao mesmo tempo, do ponto de vista da democracia, o desenvolvimento livre da expressão articula-se com o respeito à diferença, o respeito ao direito de todos a se expressar e desenvolver sua singularidade. Por isso, para se criar um Plano Educativo Local também é fundamental conhecer as condições de vida afetiva, a organização familiar, as formas de expressão presentes naquela comunidade, seus valores, suas culturas, linguagens e símbolos. Esta deve ser a continuidade do trabalho do diagnóstico do Bairro-escola.
O corpo, o pensamento e a expressão são também indissociáveis das interações sociais. O desenvolvimento integral dos indivíduos depende da sua capacidade de se relacionar e comunicar, das suas habilidades de expressão, do compartilhamento de suas ideias e do seu envolvimento em projetos coletivos. Como lembra Paulo Freire, a comunicação é um ato pedagógico e a educação é um ato comunicativo (Freire, 1973). Educadores como o francês Celéstin Freinet e o médico polonês Janusz Korczak, muitas décadas antes do advento da Internet, já ressaltavam a importância dos meios de comunicação feitos pelos jovens, como jornal, mural e rádio. Estas ideias se atualizam no contexto das redes, da sociedade do conhecimento: educar-se significa envolver-se em múltiplos fluxos comunicativos, fluxos que serão tanto mais educativos quanto mais rica for a trama de interações comunicativas. Um território educativo potencializa os fluxos comunicativos nos quais as pessoas se envolvem, ampliando suas redes e possibilidades de trocas. Daí a necessidade de conhecer estes fluxos e redes.
A dimensão intelectual do desenvolvimento humano é intrinsecamente conectada às demais. O desenvolvimento do intelecto depende do desenvolvimento afetivo, corporal, simbólico e social. Por isso que a escola, apesar de ser totalmente centrada nessa dimensão, de modo geral, a limita. O território é um contexto mais propício para as muitas aprendizagens e a educação integral reconhece este fato quando dialoga com a “pedagogia das cidades” (Ávila, 2012: 258-266). No contexto da “vida vivida”, multiplicam-se as situações em que a escuta, a leitura e a produção de textos orais, escritos e visuais se relacionam de forma significativa com a análise linguística, envolvendo tarefas que articulam as diferentes práticas: ler para conhecer, ler para escrever, escrever para ler, decorar para representar ou recitar, escrever para não esquecer, ler em voz alta para outros escutarem, falar para analisar. Como resultado, tem-se produção de vídeos, exposições, edição de livros, murais, jornais, boletins informativos, páginas virtuais, circulares, manifestos, campanhas que se espalham pelos territórios à medida em que estes se tornam educativos.
Os projetos se multiplicam a partir de inquietações, desejos. Especialmente no caso de crianças, adolescentes e jovens, sua curiosidade vigorosa possibilita-lhes a formulação de perguntas provocadoras e perspicazes orientadas pelo prazer da descoberta. Uma pergunta leva a outra, que induz a representações mentais, conceituações e conexões entre os conceitos apreendidos. O conhecimento se faz em rede, com conexões, processos criadores, potencialidades que se atualizam na relação entre significados, objetos e acontecimentos. Na busca dos significados, as pessoas aprendem a observar, comparar, associar, classificar, ordenar, medir, quantificar, inferir, verificar e refletir. Essas habilidades se desenvolvem no contato com os objetos. Por exemplo, em contato com uma obra de arte, o observador é estimulado para o desenvolvimento das habilidades relacionadas ao senso espacial, como a proporcionalidade e a localização. Já em contato com uma narrativa, o leitor é apresentado a sequências singulares de acontecimentos e emoções que envolvem os personagens e, na busca da construção desses significados, precisa desenvolver a capacidade de relacionar a parte com o todo e as partes entre si. Na gestão dos tempos e espaços necessários para a realização dos projetos nos territórios, as pessoas aprendem a forma como suas culturas classificam, ordenam, contextualizam, selecionam, organizam, distribuem, partilham e compartilham (Singer, 2008).
Ao alargar a visão de educação, a educação integral articula o direito às ciências e tecnologias com o direito às culturas, aos valores, ao universo simbólico, ao corpo e suas linguagens, expressões, ritmos, vivências, memórias e identidades diversas.
A governança democrática e as instâncias de participação do território
A governança do território educativo constrói-se em fóruns públicos democráticos onde crianças, adolescentes, jovens e adultos, gestores públicos, pesquisadores, educadores e todos os demais interessados encontram-se para desenhar um plano voltado à garantia das condições para que as novas gerações desenvolvam-se integralmente. O Bairro-escola convida os atores de um território a, juntos, conhecerem a realidade em que vivem e proporem ações que visam transformá-la, tornando-a mais justa, democrática e solidária.
Instituir um fórum com estas características não é processo fácil, ao menos não nas grandes cidades brasileiras, onde a cultura de participação, escuta, articulação e responsabilidade coletiva é muito frágil. Há ainda que se instituir processos decisórios baseados na análise consistente de dados, utilizando como método, a pesquisa-ação. A pesquisa-ação é um método forjado nos anos 1940 na Europa e nos Estados Unidos, utilizado em diversas áreas do conhecimento, mas que ganhou contornos definitivos no campo da educação na América Latina nos anos 1970, mesma época em que os trabalhos do educador Paulo Freire se consolidavam e se tornavam cada vez mais conhecidos (Tripp, 2005: 443-466).
Os processos decisórios envolvidos na pesquisa-ação são sempre participativos, colaborativos e acompanhados de uma reflexão sistemática. Por isso, a pesquisa-ação depende de um espaço democrático de decisão, no qual o projeto de intervenção, no caso, o Plano Educativo Local (PEL), seja continuamente debatido e sistematicamente refletido com base em leituras coletivas dos dados levantados.
Na instância de formulação e gestão do PEL, os processos envolvem gestores, lideranças comunitárias, educadores, técnicos e jovens na reflexão sobre as características da comunidade, suas vocações, seus potenciais e os desafios que o grupo percebe. Com base nesta leitura coletiva, o pesquisador auxilia o grupo a elaborar um plano de ação sustentável, definindo metas, indicadores e formas de monitoramento. Criam-se instrumentos que possibilitam a construção colaborativa do conhecimento, como sites e grupos de discussão. As decisões são sempre tomadas pelo coletivo e os resultados alcançados compartilhados com a comunidade para inspirar políticas públicas locais.
Orientado pela pesquisa-ação, o Bairro-escola coloca os atores em situação de produzir, circular e utilizar informações e orientar ações tomando decisões com base em considerações estratégicas e táticas, no contexto de uma atividade planejada. Uma situação de aprendizagem, portanto. O fórum onde se dá a governança do Bairro-escola alinha-se, assim, a um novo paradigma de gestão pública.
Nesse novo paradigma, a transparência e a efetividade da comunicação são fundamentais. Os produtores da informação são as pessoas da comunidade e estas informações nascem das definições do fórum público. A efetividade da comunicação é avaliada, sobretudo, pelo nível de participação nas ações promovidas e decisões tomadas (Cidade Escola Aprendiz, Vol. 3, 2011). Por isso, é importante que o diagnóstico das instâncias de participação do território também levante como se dão os fluxos de comunicação ali – ou seja, como as pessoas nele se comunicam e quais são os mecanismos e instrumentos disponíveis na comunidade para a produção e disseminação de informação. No diagnóstico que aqui apresentamos, isso já foi feito em relação às escolas. Na sua sequência, os demais fluxos de comunicação também precisarão ser conhecidos.
Na perspectiva do Bairro-escola, a gestão pública também se caracteriza pela apropriação comunitária daquilo que é público. Isto porque, quando um fórum inicia processo de pesquisa-ação, compartilhando conceitos ou experiências e levantando potenciais educadores da comunidade, muitas vezes esbarra no desperdício e na gestão autoritária de recursos públicos.
As políticas públicas são invariavelmente desperdiçadas quando não há boa articulação entre os níveis de governo, secretarias e equipamentos encarregados de promovê-las, ou seja, quando estes não dialogam nem convergem. Também são autoritárias quando são formuladas e impostas pelos órgãos centrais do governo, sem participação dos cidadãos diretamente envolvidos, com critérios de gestão e avaliação definidos de maneira centralizada.
Os potenciais de geração de renda locais igualmente são desperdiçados quando não se reconhecem as vocações próprias do lugar, os saberes e competências das pessoas dali. Espaços públicos da comunidade, como praças e ruas de lazer são muitas vezes subutilizados porque não se encontram em bom estado de conservação ou simplesmente porque a população tem medo de permanecer naquele local público, sentindo-se vulnerável à violência. Equipamentos de cultura, como bibliotecas e galerias, são esvaziados porque não atraem a população local, que não se vê reconhecida em seus ambientes e programas. Os veículos de comunicação, assim como os equipamentos de cultura e as instituições educadoras do lugar, muitas vezes, são esvaziados pela lógica da competição que termina por beneficiar os grandes grupos, que não têm vínculo qualquer com as comunidades. Escolas e outras instituições de serviços públicos são geridas como se fossem propriedade de seus diretores, que esvaziam os conselhos gestores e não prestam contas à comunidade.
O diagnóstico da gestão pública local, especialmente no que se refere às instâncias de participação que tem na pauta a infância, a adolescência e a juventude é fundamental para a elaboração do Plano Educativo Local que deve contribuir para a superaração deste desperdício de potencial transformador.
A escola articuladora dos potenciais locais
No território educativo, a escola deve tornar-se um núcleo articulador: das políticas públicas, dos recursos comunitários e, principalmente, do conhecimento local. Pode desempenhar este papel porque tem em sua missão a tarefa educativa e porque é, hoje no Brasil, o equipamento público mais capilarizado pelo território nacional e frequentado diariamente pela quase totalidade de crianças, adolescentes e jovens. Daí que a escola esteja no centro da área de abrangência do território a ser diagnosticado.
O diagnóstico das condições das escolas é necessário para que o coletivo possa definir um plano de ação voltado para a construção de projetos político-pedagógicos democráticos, fundamentados pela educação integral. Esses processos incidem na gestão, na organização dos tempos e espaços, no currículo e nos relacionamentos interpessoais.
Na escola articuladora do território, todos que dela participam têm direitos de decisão sobre o seu destino. O compartilhamento das responsabilidades, as decisões que podem alterar a posição de cada um no coletivo são tomadas em conjunto, incluindo gestores, educadores, funcionários, estudantes e pais. Cada um é, neste sentido, responsável por si, mas também pelos demais. Isso faz com que se intensifique a afetividade dos relacionamentos.
O aprendizado do comportamento democrático se dá com a prática. Trata-se de grande variedade de práticas de mediação e de tomadas coletivas de decisão, cuja vivência é indispensável para que todos possam aprender o que deles se espera e o que devem esperar dos outros. Os que se formam num meio em que prevalece a democracia vivem desde cedo situações definidas por comportamentos solidários. Aprendem que as pessoas diferem, mas que estas diferenças são positivas; que ninguém é tão forte que não precise do auxílio dos outros e que a união fortalece o coletivo e o indivíduo. São levados a perceber que a desigualdade não é natural e nem decorre da superioridade de quem manda sobre quem obedece. Que a desigualdade é ruim e injusta e que ela só pode ser abolida pela prática da solidariedade entre todos (Singer, 2009: 100-103).
Talvez o aspecto mais importante para a constituição da escola como núcleo articulador do território educativo seja a atitude de acolhimento e respeito e a consequente criação de vínculos entre equipe, estudantes e famílias, vínculos que perduram mesmo depois que eles já saíram da escola. Para o bom funcionamento da escola, a união entre estudantes, educadores, funcionários e famílias é essencial. Neste ambiente, a vigilância é substituída pelas relações de confiança. Estudantes, educadores e funcionários não estão na escola para cumprir tarefas que lhes são impostas ou se submeter a critérios externos relativos à evolução do aprendizado, como promoções ou repetências. Ao contrário, todos são membros de um coletivo, responsáveis pelas decisões que afetam suas vidas e reconhecidos em sua individualidade (Singer, 2009: 105-107).
Elemento chave das atitudes de acolhimento e respeito em um ambiente onde prevalecem as relações de confiança é o que se refere às práticas de controle social. Nas escolas abertas à comunidade estas práticas voltam-se para a restauração das relações entre as partes envolvidas em conflitos e também com a comunidade afetada por eles. Estruturando-se sobre relações cooperativas, as escolas favorecem atitudes de respeito. Nesse contexto, as práticas de controle social visam, a um só tempo, apoiar as pessoas envolvidas em conflito e garantir que elas assumam responsabilidade por seus atos. Para tanto, todos os membros da comunidade escolar são estimulados a desenvolver estratégias não punitivas nas suas relações, aprendizado que levam para a mediação dos conflitos envolvendo outras pessoas da comunidade. Quando necessário, o conflito é debatido coletivamente de forma pública, e o coletivo busca que os envolvidos assumam suas responsabilidades, reparem os danos, reconheçam os sentimentos de todos e passem a cuidar de si próprios, dos outros e do bem comum (Singer, 2009: 109-114)
Outro aspecto diretamente afetado pela abertura da escola ao território é a sua organização espacial, ou o que Paulo Freire chamou de pedagogicidade da materialidade (Freire, 1992). As escolas que se abrem ao diálogo rompem com a orientação disciplinar que enfileira as carteiras de frente para a mesa do professor, na qual se propõe a não-comunicação entre os estudantes, e em seu lugar introduzem o trabalho em grupo, a forma circular. A abertura para o diálogo com a comunidade também abre os portões, destranca as portas, disponibiliza os recursos, integra a escola com a rua. Torna público o que é público, dos livros da biblioteca ao auditório, passando pelos computadores, materiais eletrônicos e qualquer outro tipo de recurso. E isto se reflete na “boniteza das salas” de que fala Freire. Quando os recursos são de todos, todos cuidam.
Estas transformações no espaço têm, ao menos, outras duas implicações importantes. De um lado, ela estimula mudanças nos papéis de educadores e estudantes. Em roda, quando o estudante expõe suas experiências e reflexões, o educador escuta. Quando os estudantes trabalham em grupos, o educador participa na medida em que é solicitado. Não mais aquele que professa o conhecimento diante de uma plateia passiva, mas sim aquele que escuta, aprende e orienta. De outro lado, estimula o autoaprendizado. Quando as portas das bibliotecas se abrem e os livros saem dos plásticos, os computadores saem da sala de informática e se distribuem pela escola, a quadra fica disponível, quando enfim os estudantes adquirem liberdade de acesso e uso sobre os recursos pedagógicos, desenvolvem habilidades fundamentais para o exercício autônomo de suas pesquisas. Mas, no território educativo, os espaços e recursos da escola não ficam disponíveis apenas para estudantes e professores, abrem-se também para a comunidade em geral, que passa a frequentá-la e participar de sua gestão (Singer, 2009: 103-104).
E não é só o espaço escolar que se transforma quando a escola se abre para a comunidade. Também o tempo se flexibiliza. Quando a diversidade local é incluída no projeto político-pedagógico da escola, o dia não precisa mais ser fragmentado em aulas de 50 minutos, assim como os anos não precisam necessariamente ser fragmentados em séries. Não se espera que pessoas da mesma idade sejam iguais em habilidades, interesses e talentos e não se aposta na homogeneidade para o progresso do aprendizado. Ao contrário, a aposta se faz nos estímulos e desafios que a convivência com os diferentes possibilita e o tempo se organiza na medida das necessidades da aprendizagem. Quem sabe, lê para os que ainda não estão alfabetizados e quem não conhece algum assunto pergunta para quem conhece. Com liberdade para pesquisar o que é de seu interesse, cada estudante compartilha com os demais suas paixões e talentos.
Isto significa que o território educativo tem implicações definitivas sobre a organização curricular. Quando a escola se abre, as diversas culturas de seus estudantes, educadores e da comunidade onde está inserida tornam-se o ponto de partida de seu projeto político-pedagógico. Com esta base, a solidariedade é o elo que possibilita a produção de conhecimento, que, embora não reproduza, certamente dialoga com a cultura acadêmica. Os estudantes realizam seus projetos usando a solidariedade como organizador coletivo da atividade escolar, ao somar seus saberes aos de educadores, colegas e outras pessoas de sua comunidade, cada um com suas múltiplas experiências. Assim, os saberes específicos e os genéricos constroem a sabedoria coletiva solidariamente. O território educativo promove, enfim, o que Arroyo chamou de outra pedagogia, que parte de outros sujeitos (Arroyo, 2012).
Ao se abrir para a comunidade, a escola não só transforma os papéis de estudantes e educadores e abre seus portões, como também se abre para o mundo, trazendo pessoas da comunidade para desenvolverem projetos, promovendo trilhas educativas (Cidade Escola Aprendiz, vol. 2, 2011) que incluem a cidade como campo de pesquisa, intervenções no bairro, participação nas organizações comunitárias e parcerias com outras comunidades educativas. Por essas razões a análise de todos esses aspectos da organização escolar é eixo fundamental do diagnóstico do Bairro-escola.
Condições da rede intersetorial para a educação integral
O pressuposto metodológico do Bairro-escola é o reconhecimento da responsabilidade conjunta do Estado, da sociedade, da família e dos próprios jovens no processo de seu desenvolvimento integral. A missão do Bairro-escola é promover o aprimoramento das condições necessárias para isso.
O sistema escolar brasileiro – assim como em muitos outros países – tem demonstrado seus limites em altos índices de evasão escolar e no baixo desempenho dos estudantes em relação às habilidades mais instrumentais. A falta de condições básicas para a aprendizagem, o distanciamento entre famílias e escolas (e consequente pouco compartilhamento de valores e processos educacionais), a desvalorização do universo cultural dos estudantes pela escola, o absenteísmo do corpo docente e as dificuldades da gestão escolar são os fatores mais evidentes aí implicados.
No entanto, para além das dificuldades estruturais do modelo escolar ultrapassado, é fundamental considerar que a desarticulação entre os serviços públicos nos diferentes níveis de governo (municipal, estadual e federal), a descontinuidade entre os segmentos do ensino (infantil, fundamental, médio e superior) e a desarticulação das organizações que compõem o sistema de garantia de direitos da criança, do adolescente e do jovem são fatores que concorrem para agravar o quadro educacional brasileiro. As organizações que têm como público alvo as crianças e os adolescentes partem de concepções muito diferentes do desenvolvimento humano, de educação e de direito e operam numa lógica fragmentada e competitiva. Como diz Arroyo:
Essa velha dicotomia, de um lado o direito a viver, ao cuidado deixado por conta da família, da esfera privada, da mãe, sobretudo, ou deixado por conta das instituições como creches, orfanatos, Febens. (…) [De outro lado], o direito a aprender, ao conhecimento, ao domínio das competências deixado por conta das escolas, dos profissionais do conhecimento, da formação para a cidadania e para o trabalho. (…) Às escolas chegam seres humanos únicos, que exigem outras concepções pedagógicas menos dicotômicas, mais unitárias da formação e do desenvolvimento humano/cidadão, total (Arroyo, 2012: 255).
Esta velha dicotomia impõe uma lógica de encaminhamentos que leva ao desperdício de diversos recursos existentes no território. No caso das crianças e dos jovens, por exemplo, é comum que aqueles que não se enquadram no modelo de ensino vigente sejam encaminhados para os serviços de atendimento psicopedagógico e psiquiátrico ou para o Conselho Tutelar[2]. A ausência de resultados acaba levando a novos encaminhamentos, desta vez para outras escolas. Assim, todos os serviços públicos disponíveis são acionados, mas não surtem efeito positivo quando simplesmente são destituídos da sua função educadora.
Para que o território se torne educativo, é necessário que se forme uma rede de proteção social à criança, ao adolescente e ao jovem orientada pelos princípios da educação integral. Tal rede possibilita o alinhamento de agendas e a unificação de cadastros e sistemas de informação em uma lógica de colaboração e transparência. Como princípio orientador, a rede de proteção social desenvolve estratégias de integração dos agentes locais visando à superação da lógica dos encaminhamentos pela abordagem integrada, que prioriza a criação de equipes multidisciplinares de referência para cada um dos atendidos e suas famílias.
O Bairro-escola possibilita articular diversas iniciativas voltadas para infância, adolescência e juventude com as políticas de educação integral ao apoiar a formação de redes intersetoriais e interdisciplinares, integrando as escolas às organizações não governamentais, conselhos tutelares, centros de referência, de apoio e de formação da saúde, assistência social e justiça. É esta integração que possibilita a territorialização de políticas, programas e ações que fortalecem as famílias, as comunidades e as próprias escolas.
Além da constituição das redes de proteção social, há outro espectro de articulação intersetorial necessária para constituir territórios educativos. Trata-se daquela que possibilita a diversificação das oportunidades educativas, via integração de políticas, programas e projetos educativos de áreas diversas como cultura, esporte, meio ambiente, artes, direitos humanos, comunicação e saúde, entre outros. Para que isso ocorra é preciso, de um lado, que a diversidade cultural do território e da cidade seja reconhecida, mapeada, valorizada e divulgada. Mais uma vez, a escola desempenha aqui um papel articulador quando assume uma proposta curricular que, de um lado, legitima, valoriza e integra ao conhecimento acadêmico a cultura tradicional e as diversas manifestações culturais; de outro, estabelece parcerias com organizações e programas de diversos setores na perspectiva de seu desenvolvimento curricular (Cidade Escola Aprendiz, Vol. 4, 2011).
Desta forma o Bairro-escola contribui para, como descreve Moll, a organização de “territórios educadores a partir da escola e de articulação de arranjos educativos construídos com base em ações intersetoriais” (Moll, 2012, p. 129-156). A convergência para o território de políticas públicas nos campos diversos estrutura princípios orientadores comuns e colabora para a formação de territórios educativos constituídos de experiências realizadas nas distintas organizações da sociedade civil, abrangendo toda a rede educativa e de proteção social.
Para isso, em um território educativo, é fundamental a criação de bases territoriais para integração dos programas das diversas secretarias, órgãos da prefeitura e também programas dos níveis estadual e federal. Estas bases precisam ser construídas sobre um diagnóstico consistente relativo às políticas, aos equipamentos e programas disponíveis no território.