No extremo sul do Jardim Ângela, um dos distritos mais populosos de São Paulo, localiza-se uma das áreas de maior vulnerabilidade socioeconômica da cidade, no que diz respeito à infraestrutura urbana e ao acesso às políticas públicas de saúde, assistência e educação. O “Fundão do Ângela” – região denominada dessa forma por seus moradores, corresponde à área de atuação do Bairro-escola desde o ano de 2007, e compreende os bairros Chácara Sonho Azul, Chácara Bananal, Bombeiro, Jardim Capela, Vila Guiomar, Jardim Arizona, Jardim Vera Cruz, Jardim Aracati, Jardim Horizonte Azul e Vila do Sol.
Com base nos dados encontrados nesta pesquisa, que reforçam a constatação dos moradores acerca da insuficiência e precariedade dos equipamentos públicos, a região vê somada às suas necessidades mais prementes a complexa equação de lidar com importantes questões ambientais, haja vista estar inserida em uma área de proteção a mananciais. A história do “Fundão”, de acordo com Carmo (apud Marques: 2010), remete à ocupação de uma chácara de 27 mil metros quadrados, dividida em 240 lotes, no início dos anos 1990. À época, não havia no território infraestrutura básica alguma, como rede de esgoto ou energia elétrica.
Passados mais de dez anos de sua primeira ocupação, em 2003, pesquisa do Laboratório de Habitação da USP1, feita em colaboração com moradores da região, apontava que indicadores de vulnerabilidade permaneciam altos, em comparação com regiões menos periféricas da cidade. Como exemplo disso, enquanto alguns locais da região sul do distrito do Jardim Ângela apresentavam de 15 a 30% dos chefes de família sem rendimento, na maior parte do território considerado como “Fundão”, este número chegava a até 50% dos chefes de família na mesma situação. Essa é uma diferença alarmante quando em comparação ao distrito de Pinheiros, por exemplo – neste distrito, no mesmo ano, 45,96% dos chefes de família ganhavam mais de 20 salários mínimos (SM) e apenas 7,09% recebiam menos do que três SM.
Em 2010, dados da Unidade Básica de Saúde da Vila Calu, localizada na região, demostravam que 67,65% das famílias ainda não possuíam rede de esgoto, 41,34% faziam uso de fossas, e 25,71% ainda viviam com o esgoto a céu aberto (Carmo: 2011).
A história de exclusão social a que foi relegada essa região, em uma área ambientalmente sensível, é bem retratada no texto a seguir:
“Em 1975, a Lei de Proteção aos Mananciais estabelece critérios rígidos para a ocupação das áreas de contribuição do reservatório por loteamentos. A criação da lei não foi acompanhada de fiscalização e o resultado é o aparecimento de grande número de loteamentos clandestinos. A ilegalidade a que são submetidos os moradores dessas áreas desde então se soma à precariedade da infraestrutura urbana na consolidação de uma periferia extremamente excluída, em que a ausência do poder público se faz notar, desde a configuração viária à falta de equipamentos públicos, passando pela aceitação do descumprimento da legislação vigente” (Programa Bairro Legal: 2003).
Como estratégia de enfrentamento à carência de infraestrutura básica, a região do Jardim Ângela e, sobretudo do Fundão do Ângela, passou a se caracterizar pela forte atuação de movimentos sociais que reivindicavam melhores condições de vida e influenciavam as práticas cotidianas de sua população na periferia (Idem). Associações de moradores, grupo culturais, saraus de poesia, coletivos jovens, entre outros, passaram a fazer parte da cultura de reivindicações e transformações do território, sugerindo estratégias de enfrentamento das situações de vida e conquista dos direitos sociais básicos.
Área do diagnóstico
A despeito de ter atuado na região do “Fundão” do Ângela, o Aprendiz, na tentativa de apreender de forma mais apurada as condições que impactam o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes nesse território, tomou apenas parte desse território como área de abrangência para fins deste diagnóstico. Um recorte geográfico circunscrito em 2 km a partir do endereço de uma das escolas públicas da região, Escola Estadual Honório Monteiro, foi escolhido para fins de análise. Seguindo esse critério de delimitação, este território pertence tanto ao município de Itapecerica da Serra, como ao distrito do Jardim Ângela (em São Paulo).
Como explicado no Capítulo 2 deste relatório, a escolha de uma escola como epicentro da região a ser diagnosticada, relaciona-se ao fato de que constitui elemento fulcral das ações de educação integral de um território. É ela quem recebe as crianças e jovens que ali estudam, articula e catalisa oportunidades educativas, e relaciona-se com a comunidade, buscando promover o desenvolvimento pleno de seus estudantes. Neste caso específico, a escola Honório Monteiro foi escolhida por já ser participante do Bairro-escola Fundão do Ângela e por receber grande parte das crianças que estudam na região, e abranger vários níveis de ensino, a saber, Ensino Fundamental I e II, Ensino Médio e EJA (total de 2400 alunos).
A história de articulações do Bairro-Escola Fundão do Jd. Ângela.
A atuação da Associação Cidade Escola Aprendiz na região do Fundão do Jardim Ângela teve início no ano de 2007. Na época, o diretor da escola de Ensino Infantil, EMEI Chácara Sonho Azul, solicitou à organização o estabelecimento de uma parceria para o desenvolvimento de ações de intervenção comunitária na região. O intuito era transformar a relação da comunidade com a escola e com os espaços públicos, resgatando a identidade local, a partir de intervenções artístico-culturais. A expectativa era de que essa atuação fortaleceria o vínculo dos alunos com a escola, tornaria o espaço escolar mais convidativo aos pais e à comunidade, e as pessoas passariam a se relacionar com os espaços públicos do entorno de outra maneira, a partir de processos coletivos de revitalização dessas áreas. Dessa forma, foram realizadas com a comunidade, oficinas de arte urbana, viabilizadas a partir do projeto “Escolas Irmãs” (financiado por recursos de empresas incentivados via Lei Roaunet).
Em 2009, com o apoio da empresa Prosegur, e por meio do Fundo Municipal da Criança e do Adolescente, tais iniciativas passaram a compor um rol de estratégias mais contínuas e abrangentes, na perspectiva do fomento às condições para o desenvolvimento integral das crianças e jovens do território. Tratava-se do projeto Pró Bairro Escola Sonho Azul.
O objetivo desse projeto era o de realizar ações em rede e com as escolas, na perspectiva do Bairro-escola. Nesse contexto, o Aprendiz passou a participar e fortalecer um grupo que acabava de se formar com o apoio da Plataforma dos Centros Urbanos (PCU), lançada pela UNICEF. O programa alinhava-se ao Bairro-escola na medida em que buscava um processo de articulação local em torno da defesa dos direitos das crianças, adolescentes e jovens da região, e revelava-se como estratégia consistente de articulação.
Chamado de Grupo Articulador Local, esse coletivo era composto por lideranças locais, gestores de equipamentos públicos da região e organizações da sociedade civil, e atuava no Fundão do Ângela como descrito anteriormente. Ao longo do processo da PCU, dois grupos articuladores da região fundiram-se, ampliando-se o raio do Bairro-escola do Fundão do Ângela.
O grupo obteve o apoio do Aprendiz no que tange ao desenvolvimento de algumas das tecnologias que compõem o Bairro-escola. Ao buscar a potencialização da cultura local e a apropriação coletiva dos espaços públicos por meio da cultura, a tecnologia dos arranjos culturais gerou impactos imediatos na comunidade. Espaços antes degradados – tais como a escadaria que liga a Chácara Sonho Azul à Vila Calu – ao continuarem a ser revitalizados pelas intervenções artísticas coletivas e mobilizar coletivos locais de cultura, chamaram a atenção do entorno. A comunicação comunitária também pôde contribuir para que essas mesmas ações ganhassem visibilidade na comunidade. Um site comunitário de notícias foi desenvolvido, e moradores puderam produzir suas próprias noticias, fortalecendo a comunicação, em uma perspectiva local de desenvolvimento. Seminários, oficinas comunitárias e encontros com a comunidade, trataram de temas como os desafios da questão ambiental no território, a questão das pessoas com deficiência, o fomento à cultura local, entre outros.
Alguns desafios apresentaram-se. No que tange à articulação local, foi difícil envolver os equipamentos públicos nas discussões sobre o território. O discurso dos representantes destas instituições era o da falta de equipamentos na região, uma sobrecarga de trabalho era imposta aos seus gestores e representantes, o que dificultava a participação dessas instituições em fóruns locais, tais como o Grupo Articulador Local. A despeito disso, mostraram-se disponíveis para apoiar as ações. Já a participação de lideranças locais, pelo contrário, foi intensa: pessoas que atuavam há muito tempo nos movimentos sociais de reivindicação de moradia e transporte, por exemplo, frequentavam assiduamente as reuniões. Exemplo disso foram as lideranças do bairro Jardim Vera Cruz, membros do Grupo de Amigos Fé Luz, da Associação do Jardim Arizona e artistas locais que desenvolviam ações comunitárias voltadas para o fortalecimento da cultura.
Com o tempo e a forte presença dessas lideranças, a capacidade de ação local ampliou-se. Em 31 de maio de 2011, foi realizado um encontro – “Seminário de Infraestrutura urbana: do outro lado da ponte” – com o objetivo de reunir gestores públicos, moradores e estudantes da região e debater, de forma mais ampla, as principais questões do território quanto à cultura, saúde, mobilidade e meio ambiente.
A participação de cerca de 50 estudantes do Ensino Fundamental II da escola Honório Monteiro no seminário surpreendeu a equipe organizadora na época. Por iniciativa de um professor com longa trajetória de militância no Jardim Ângela, e da coordenadora pedagógica, moradora e ex-aluna da escola, os estudantes da escola caminharam pelas ruas do bairro a fim de participar do seminário. Relatavam o desejo de que a instituição pudesse tornar-se um espaço mais democrático e significativo para as crianças e jovens, elemento essencial para a construção de comunidades educativas por meio do Bairro-escola.
Também era desejo da escola debater sobre outros problemas enfrentados cotidianamente pela instituição, e que afetavam diretamente os estudantes. Entre eles, salas superlotadas, falta frequente de professores e ausência de equipamentos de saúde, cultura e lazer na região. O Seminário gerou resultados importantes. Entre eles, figuram como principais, a maior visibilidade do Grupo Articulador Local na região e a aproximação entre este e órgãos, equipamentos e programas do governo, assim como com a escola mencionada.
De agosto de 2009 a dezembro de 2012, o Aprendiz foi ainda responsável pela formação dos Agentes Jovens da E.E. Samuel Morse, também localizada na região. A escola fazia parte do Projeto Jovem de Futuro (PJF), do Instituto Unibanco, do qual o Aprendiz era parceiro. O PJF visava à redução da evasão escolar e à melhoria do desempenho dos estudantes. O Aprendiz foi responsável por formar seis jovens de cada escola atendida pelo Projeto, entre elas, a Samuel Morse.
Os estudantes, todos do Ensino Médio, recebiam a formação do Aprendiz sobre Criação de Espaços de Diálogo na Escola, a fim de permitir que eles expressassem seus interesses e desejos e que estes fossem realizados no dia a dia da escola. A constituição de espaços de diálogo promove um ambiente pedagógico mais democrático, mais favorável ao aprendizado e fortalece os vínculos dos estudantes com a escola e com a comunidade a partir da produção coletiva e colaborativa de veículos de comunicação.
A escola e a rede
A partir do momento em adquiriu mais clareza quanto ao seu objetivo – o de buscar condições para o desenvolvimento integral das crianças, adolescentes e jovens da região, na perspectiva de um trabalho em rede – o Grupo Articulador Local passou a se denominar Rede Juca (Rede da Juventude, Criança e adolescente) e a se articular com a escola Honório Monteiro.
Um exemplo dessa articulação foi a elaboração coletiva do Festival Bairro-escola M’Boi Mirim, a pedido dos próprios alunos, que abordou o tema da educação e cultura. A partir de encontros coletivos entre estudantes, professores e integrantes da rede, algumas oficinas foram definidas, assim como suas linguagens (teatro, grafite, música, percussão africana) e temas de debate. Um deles era a questão dos conflitos ou a violência na escola.
Do processo, rico em termos de mobilização da juventude e da escola, um grupo de jovens passou a se reunir para discutir questões relacionadas à juventude e sobre o que poderia ser feito para que a escola promovesse esse debate. Desta forma, durante o ano de 2012, teve início a mobilização dos estudantes para a criação do grêmio estudantil na escola Honório Monteiro. A proposta, realizada com o apoio do Aprendiz, contou com o incentivo da gestão escolar e da Rede JUCA.
Como uma das ações do grêmio, de outros estudantes envolvidos e do Aprendiz, um espaço abandonado da escola foi revitalizado, tornando-se um centro cultural dos jovens, aberto também à comunidade. Essa conquista empreendida pelos estudantes mostrou-se bastante significativa na medida em que não havia um espaço na escola destinado especificamente às suas atividades e apresentações, e a abertura à comunidade fez dele um espaço de conquista do território.
Também como consequência destas ações de articulação, e a pedido da escola, iniciou-se um processo de apoio à elaboração de seu projeto político pedagógico, de forma democrática. A partir da discussão com professores, e na tentativa de consolidar um conselho escolar participativo, tal medida, apoiada pelo Aprendiz, pôde contar com a participação do grêmio, eleito democraticamente no mesmo período, e de alguns coordenadores pedagógicos da escola.
Muitos foram os desafios enfrentados no trabalho de articulação com as escolas. Na medida em que o processo democrático ainda não se instaurava de fato, em alguns casos, a mobilização interna dependeu de figuras-chave, como o professor que havia mobilizado os alunos em 2011 para a participação no Seminário, ou a antiga coordenadora pedagógica, que neste momento atuava novamente como professora.
As contradições passaram pelas vicissitudes do processo democrático. Eventualmente, pelo fato de a comunidade ter se fortalecido e passado a questionar mais fortemente medidas ao poder público, houve maior resistência de alguns desses equipamentos quanto ao avanço de uma gestão participativa de fato.
De qualquer maneira, no ano de 2013, mesmo sem uma atuação semelhante a dos anos anteriores, o Aprendiz pôde observar a potência do Bairro-escola Fundão do Ângela. Por meio do Programa Aprendiz Comgás – que passou a oferecer aos jovens estudantes da região oportunidades de elaborarem ações de intervenção comunitária de sua autoria no território – o Aprendiz viu surgirem propostas coerentes com esse objetivo. A partir de parcerias com o território, os jovens estudantes da escola Honório Monteiro propuseram mostras de cinema em espaços públicos, seguidas de debate em torno de temas de interesse para a comunidade; criaram rádio comunitária, promoveram a reforma de uma biblioteca do bairro e propuseram intervenções criativas nos espaços ociosos da escola. Tais propostas confirmaram a potência das ações da juventude, para a continuidade das ações do Bairro-escola.
Da mesma forma, a Rede Juca, mesmo sem o apoio direto do Aprendiz no segundo semestre de 2013, manteve uma composição diversa, sustentou seu diálogo frente às escolas, subprefeitura e a outros equipamentos do território, com o objetivo de manter a articulação da rede de desenvolvimento integral do território. Atualmente, esta articulação conta com o apoio, em especial, da escola municipal de Educação Infantil Chácara Sonho Azul – responsável por acionar o Aprendiz, em 2007, para dar início às ações no território. A escola mantém-se como equipamento articulador de oportunidades educativas na região, liderando processos de mobilização em torno da garantia do desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens do Fundão do Ângela. A parceria entre o Aprendiz, a escola e a rede, permanece, e o território demonstra grande potencial para o desenvolvimento estruturado de um Plano Educativo Local.