No caso da região central de São Paulo, do ponto de vista deste diagnóstico, focamos nosso olhar em um território formado pelo raio de 2 Km a partir da escola central definida. Este território engloba partes ou a totalidade dos distritos do Bom Retiro, Santa Cecília, Barra Funda e Casa Verde.
A partir deste recorte, fica claro que a pesquisa empreendida neste microterritório não pode ser considerada como um diagnóstico da área total do Centro de São Paulo (que poderia ter muitos limites possíveis), mas sim um recorte que engloba inclusive um distrito da Zona Norte de São Paulo, a Casa Verde e um distrito da região Oeste, a Barra Funda, sendo portanto de grande heterogeneidade. Trata-se de um território sob responsabilidade municipal de três Subprefeituras diferentes: Sé (distritos Santa Cecília e Bom Retiro), Lapa (Barra Funda) e Casa Verde (Casa Verde). As características básicas destes distritos são de grande importância ao se objetivar a construção de um território educativo: o que há nesta região? Com o que estamos lidando?
A primeira resposta que tivemos ao iniciar a pesquisa é que nesta região temos pessoas. Esta “descoberta” ainda que possa parecer obvia para muitos, é de grande importância política posto que nos últimos anos têm se tornado muito comum discursos que alegam a pouca existência de moradores na região mais central de São Paulo. Se estes não existem não há urgência para a constituição ou fortalecimento de políticas em relação a eles, do mesmo modo a constituição de um ou mais territórios educativos não faria sentido. Ao somarmos a população dos dois distritos centrais aqui pesquisados (Santa Cecília e Bom Retiro), temos uma população total de 117.431 moradores, população claramente não irrisória. Se somarmos ainda à população dos outros dois distritos analisados chegamos a um total de 217.410. Ainda assim, as populações dos distritos são bastante diferentes: Barra Funda, destaca-se por ter uma população menor em comparação com os outros distritos: de 14.371 pessoas, enquanto Bom Retiro possui 33.825; Casa Verde 85.608 e Santa Cecília 83.606. Este dado parece se relacionar com o modo como a região se conformou, com muitos galpões e extensas áreas ocupadas por indústrias e pequenas fábricas.
Quem são os moradores desse local e como vivem? Uma caminhada e algumas conversas com moradores da região provavelmente seriam suficientes para aferirmos, a partir de seus sotaques e idiomas, que estes são de diversas localidades. Esta grande diversidade é comprovada pelos dados aqui apresentados: 20% dos moradores nasceram em outros estados e 6% em outros países. A região do Bom Retiro é um exemplo claro desta realidade. Segundo Toji (2007), esta região tem recebido ao longo de sua história diferentes ondas imigratórias, de europeus (italianos, espanhóis, portugueses, poloneses, armênios, gregos, entre outros), de asiáticos, em especial os coreanos e, mais recentemente a partir da década de 1980, de imigrantes latino-americanos, principalmente bolivianos, paraguaios e peruanos.
As condições socioeconômicas dos moradores também dizem muito sobre a região: 45% dos domicílios possuem renda entre 5 a 20 salários mínimos, enquanto 37,6% ganham de 0 a 5 salários mínimos. Se analisarmos a partir dos extremos, apenas 2,8% dos domicílios possuem renda de até um salário mínimo enquanto 16% ganham mais de 20 salários mínimos. Embora estes dados apontem para um panorama positivo, com uma ampla maioria de domicílios ganhando mais de 5 salários mínimos (um total de 61%), cabe lembrar que a renda total de um domicílio precisa atender a todos os seus moradores. No caso de nossa região, o número de moradores por domicílio também se mostra relativamente baixo: em 57,3% dos domicílios moram de uma a duas pessoas, em 33,4% de três a quatro e 9,3% possuem cinco ou mais moradores. Ao cruzarmos estes dois dados – renda e moradores por domicílio – inferimos que a pobreza existe na região, mas que não pode ser vista como um fenômeno majoritário.
Podemos observar então que os moradores da região constituem-se com uma grande heterogeneidade (possuem diferentes origens e condições socioeconômicas). Ao mesmo tempo em que este panorama garante uma de suas maiores riquezas, o multiculturalismo, esta heterogeneidade pode ser uma das causas que dificulta uma maior unidade dos moradores em torno de pautas comuns de garantia de melhores condições de vida. Eventualmente formam-se pequenos grupos que se manifestam separadamente por questões específicas – um grupo de imigrantes, uma associação de moradores de um determinado bairro, etc. – mas poucas vezes como uma mobilização mais abrangente e fortalecida. O movimento de moradia, formado por não moradores da região e moradores de ocupações [11], talvez seja o expoente principal da reivindicação de direitos na região central, como uma afirmação política do direito de se viver próximo ao local de trabalho e com maior acesso a serviços.
Os dados que citamos brevemente aqui e os outros dados que serão apresentados ao longo do diagnóstico reforçam a concepção de Marques (2005) de que a divisão espacial social não é homogênea. É deste modo que características comumente atribuídas à periferia podem ser encontradas no centro, assim como o inverso também é possível, é assim por exemplo que a taxa de mortalidade da população entre 15 e 34 anos pode variar de 39,6 no Bom Retiro para 93,4 na Santa Cecília.
De um modo geral, falar do “Centro” gera reações intensas, por vezes contraditórias, de amor e ódio. Entre as muitas características comumente atribuídas à região central de São Paulo estão: a degradação dos bairros, violência, problemas de moradia, pessoas em situação de rua. Em uma mão oposta, a grande oferta de equipamentos culturais, o fácil acesso a serviços, transportes e comércio. Esta dualidade, embora um pouco generalista, aponta as potencialidades, riquezas e dificuldades que a região enfrenta como resultado de sua história e em especial de decisões políticas as quais foi e segue sendo submetida.
Se o território deste diagnóstico engloba parte do Centro, mas considera também outros distritos, porque utilizamos o nome “Bairro-escola Centro”? Este nome refere-se à atuação do Aprendiz desde 2005 na região central de São Paulo desenvolvendo o Bairro-escola, uma metodologia que apoia o fortalecimento e promoção de territórios educativos, nos quais famílias, escolas e comunidades se articulam para garantir o desenvolvimento integral de crianças e jovens. Foi ao longo destes anos que a escola localizada no bairro do Bom Retiro, que está no centro do diagnóstico e na região central de São Paulo, aderiu à esta proposta, junto com redes, organizações locais e moradores.
O Centro é uma sala de aula
A primeira atuação do Aprendiz no Centro de São Paulo aconteceu entre 2005 e 2008 por meio do programa “O Centro é uma sala de aula”, em parceria com a Subprefeitura da Sé, a empresa Comgás e a ONG Casa Redonda. Este, que se estendeu até 2007, promovia a formação de professores da rede pública que participavam em encontros itinerantes pelos equipamentos de cultura da região, e posteriormente faziam o mesmo percurso com seus alunos, possibilitando o acesso de crianças e jovens aos recursos históricos e culturais do território. Esta experiência inicial de democratização dos potenciais educativos do Centro foi essencial para a abertura de canais de comunicação entre a cultura e a educação no território (Goulart, 2008).
Bairro-escola Barra Funda
O projeto para criação do Bairro-escola na região da Barra Funda, começou em 2008, com o convite da empresa Tgestiona (parte do grupo Telefônica) [12] que, localizada na região e objetivando ampliar e fortalecer sua relação com a comunidade do entorno, convidou o Aprendiz a assumir a tarefa de pensar uma proposta educativa para o território. O projeto teve início com oficinas artísticas (mosaico e grafite) para crianças e jovens. Posteriormente, ganhou um caráter de articulação comunitária por meio da estruturação de uma rede local, com organizações não governamentais, empresas, equipamentos públicos e representantes da comunidade. Com a formação desse grupo de mobilização, nascia a “Rede Nossa Barra”. A região de atuação, inicialmente delimitada pela linha férrea e as avenidas Rudge e Pacaembu, se expandiu ao longo do tempo, a partir do ponto de localização das organizações participantes da Rede, no entanto, manteve como foco principal as ruas dos distritos da Barra Funda e Santa Cecília.
No mesmo ano, desenvolvia-se o projeto “Mudando sua Escola, Mudando sua Comunidade, Melhorando o Mundo”, coordenado pela Unicef em diversas regiões. Na Barra Funda, ele foi realizado pelo Aprendiz e a Escola Estadual Canuto do Val.
Ambas as iniciativas contribuíram para que a Rede Nossa Barra se inscrevesse em outro projeto coordenado pela Unicef, a Plataforma dos Centros Urbanos (Unicef). Neste contexto, a Rede definiu seis metas que foram desenvolvidas durante dois anos, com o objetivo de trabalhar em prol dos direitos de crianças e adolescentes no território. Foi assim, que durante os anos de 2010 e 2011, a Rede desenvolveu diversas ações, como, por exemplo, a formação de um coletivo de comunicação comunitária local, o Seminário Desenvolvimento Empresarial e Social para a Barra Funda, a revitalização de espaços públicos com intervenções artísticas e mutirões na Escola Canuto do Val, com apoio de organizações locais.
Em 2012 a Rede Nossa Barra Funda foi certificada pelo Unicef como uma rede que trabalhava em prol da garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Com a conclusão do Projeto Plataforma dos Centros Urbanos, a maior parte da rede se desmobilizou, mas, ainda assim alguns participantes decidiram continuar compartilhando informações e realizando trocas de ideias sobre a região.
Paralelamente, tendo clareza da importância estratégica das escolas para a constituição de territórios educativos, o Aprendiz dedicou-se ao fortalecimento do projeto político pedagógico da escola Canuto do Val, instituição que assumiu o centro de nosso diagnóstico. O interesse da escola em ampliar as oportunidades para seus alunos e a relação com a comunidade permitiu a construção de uma relação dialógica, na qual escola e Aprendiz pensavam juntos as possibilidades de ampliação das oportunidades de educação integral e desenvolviam diversos projetos colaborativamente. Hoje a escola segue de modo autônomo a busca pelo fortalecimento da gestão democrática e a ampliação de sua relação com seu entorno.
Bairro-escola Luz
Em 2010 com o apoio da IBM, da Porto Seguro e da CCR, o Aprendiz iniciou sua caminhada em mais um território central, a região da Luz, tendo como objetivo mobilizar moradores, instituições locais da área de educação e cultura, assim como instituições potentes para projetos participativos e comunitários, com o objetivo de construir um território educativo. Deste modo constituiu-se um Grupo Articulador Local (GAL), com diversas pessoas e organizações locais, advindas principalmente dos bairros de Santa Ifigênia, Campos Elíseos e Bom Retiro. Entre os participantes podemos destacar a participação predominante de reconhecidos equipamentos de cultura de região, tais como Museu da Língua Portuguesa, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Museu de Arte Sacra, Museu da Energia, Sesc Bom Retiro, entre outros. A presença de representantes de instâncias governamentais também foi uma realidade: membros de diferentes secretarias participaram ativamente das reuniões, possibilitando laços mais diretos com o poder público.
Festival Bairro-escola Centro, ações educativas com uma escola da região e um projeto de percursos culturais e oficinas de comunicação com jovens das ocupações da Luz, foram alguns dos projetos/atividades desenvolvidos pelo GAL até 2013. Atualmente o grupo não tem desenvolvido reuniões, mas mantém uma rede virtual e estabeleceu laços importantes de cooperação em atividades desenvolvidas por qualquer um dos membros na região.
Trilhas da Cidadania
O Aprendiz iniciou em 2012 o projeto “Trilhas da Cidadania – A língua portuguesa pela cidade”, em parceria com a Editora Moderna, a Caritas Arquidiocesana de São Paulo e com o apoio do Museu de Arte Sacra de São Paulo. O projeto, que segue vigente, tem como objetivo apoiar a integração de imigrantes e solicitantes de refúgio por meio do ensino da língua portuguesa, aspectos da cidadania e cultura do País. O processo educativo, baseado nas trilhas educativas, vai além da sala de aula, com a realização de percursos e interações com a cidade, tendo como base os interesses dos participantes.
Bairro-escola Centro: o encontro de todos os projetos
A partir de 2012 a separação entre Luz e Barra Funda já não fazia sentido. Muitas das ações necessitavam de participantes de ambas as redes e a combinação dos projetos, que inicialmente nasceram separados, conferia mais força e ampliava as oportunidades dentro de um macro-território. É deste modo que a denominação Bairro-escola Centro, passa a ser utilizada.
O Bairro-escola é uma construção constante e um longo caminho ainda pode ser trilhado, mas já existem importantes ganhos que podem ser destacados. Entre várias tentativas, movimentos, articulações, hoje a região central (e alguns distritos próximos), conta com uma escola determinada a ampliar sua relação com a comunidade local e diversas organizações de diferentes setores e indivíduos que se conhecem, eventualmente se apoiam e demonstram interesse em participar em ações de conexão entre educação e cultura, que contribuam para o fortalecimento de um território educativo. O poder público local também se mostra disposto a colaborar e interessado nas articulações que o Bairro-escola propõe.
Entendemos que esse diagnóstico pode contribuir ainda mais para esta caminhada e para a construção de um Projeto Educativo Local.