Ainda que faça parte do desenvolvimento da sociedade moderna investigar a realidade social, nem sempre a ideia de se conhecer a realidade em que se quer atuar de forma profunda fez parte da dinâmica da gestão e planejamento, ou seja: nem sempre o desenho de políticas sociais se fez tomando como base um conhecimento sobre a realidade em que se deseja intervir. Esse fato pode parecer estranho aos olhos de hoje quando uma profusão de informações sobre as diversas escalas e facetas da sociedade apresenta-se cada vez mais disseminada e, sobretudo, acessível não somente aos gestores públicos e privados, mas a qualquer cidadão. No entanto, é preciso entender melhor a necessidade de se partir de um levantamento da realidade a partir da qual se pretende planejar transformações e mudanças, a relação entre a dinâmica da gestão de políticas e a produção de informações para percebemos que se trata de um campo complexo, novo e ainda em construção.
A leitura da realidade e das transformações sociais por meio de instrumentos, técnicas e ferramentas de leituras específicas – das quais o desenvolvimento de indicadores sociais é um exemplo proeminente – passa a ganhar espaço na agenda das ciências sociais e da administração pública ao longo da segunda metade do século XX (Januzzi, 2000). A partir dos anos 1950, a consolidação das atividades de planejamento do setor público, de um lado, o aumento, a complexificação e diversificação dos fenômenos de exclusão social (Simões et all, 2008) de outro, impulsiona cada vez mais a organização de sistemas mais abrangentes de acompanhamento das transformações sociais e aferição do impacto das políticas sociais (Januzzi, 2002). Acompanhando esses processos, contribui de maneira significativa para o desenvolvimento dessas leituras a exigência de organismos internacionais bilaterais (interessados em medir o desempenho de seus projetos), a necessidade de legitimação das políticas governamentais e, sobretudo, a democratização da informação, que amplia o diálogo entre governo e sociedade civil também no monitoramento e avaliação de políticas sociais (Kayano e Caldas, 2002).
O desafio, desde então, tem sido fazer com que o debate e a reflexão teórica sobre os desenvolvimentos das sociedades tenham um respaldo na “operacionalização de conceitos e construção de indicadores que melhor permitam conhecer a realidade” (Simões et all, 2008). Ou seja: permanecem e aumentam as desigualdades tradicionais e estruturais e também se amplia a forma como percebemos essas diferenças, já que uma sociedade mais democrática respeita e entende melhor as diferenças sociais (Idem). Além disso, passa a ser importante tornar públicas essas diferenças fazendo da informação um direito que permite o diálogo entre a gestão pública e a sociedade civil (Kayano e Caldas, 2002).
No Brasil, a quantificação e qualificação das condições de vida baseada na produção de informações sociais para fins de formulação de políticas ganha novos contornos a partir dos anos 1980 “no contexto da descentralização administrativa e tributária em favor dos municípios e da institucionalização do processo de planejamento público em âmbito local pela Constituição de 1988” (Januzzi, 2002: 2). Isso porque “Diversos municípios de médio e grande porte passaram a demandar com maior frequência uma série de indicadores sociodemográficos às agências estatísticas, empresas de consultoria e outras instituições ligadas ao planejamento público, com o objetivo de subsidiar a elaboração de planos diretores de desenvolvimento urbano, de planos plurianuais de investimentos, para permitir a avaliação dos impactos ambientais decorrentes da implantação de grandes projetos, para justificar o repasse de verbas federais para implementação de programas sociais ou ainda pela necessidade de disponibilizar equipamentos ou serviços sociais para públicos específicos, por exigência legal (para portadores de deficiência, por exemplo) ou por pressão política da sociedade local (melhoria dos serviços de transporte urbano, por exemplo) (Jannuzzi & Pasquali 1999)” (Januzzi, 2002: 2).
Os processos e sistemas de gestão descentralizada (tais como Sistema Único de Saúde – SUS, o Sistema Único de Assistência Social – SUAS, o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e Adolescente, o Estatuto das Cidades) passam a demandar de municípios, distritos e localidades um conjunto de informações sobre seus contextos locais. Assim, a produção de diagnósticos socioterritoriais na escala municipal e local é cada vez mais valorizada. Além de representar uma necessidade tornam-se também uma obrigação por lei. Em processos de planejamento (como os Planos Diretores, Planos de Manejo, etc.) e programas de governo (programas federais de Habitação, de Cultura, etc.) a exigência de diagnósticos passa a ser prerrogativa para o repasse de recursos e inserção dos municípios nos sistemas.
Como resultado, temos, de um lado, municípios e localidades cada vez mais empoderados do ponto de vista da gestão de suas políticas e com a incumbência de gerar informações detalhadas sobre sua realidade – sem que necessariamente tenham capacidade de gestão e conhecimento compatíveis com essa necessidade – e, de outro, a produção em massa de relatórios, leituras, documentos feitos de formas e qualidades muito distintas. Nesse mesmo contexto, empresas cada vez mais antenadas com ações de investimento social, ONGs preocupadas em demonstrar a validade e eficiência de seus projetos (e tendo que prestar contas à instâncias governamentais e, sobretudo, à sociedade) também passam a produzir um conjunto enorme de leituras sobre os diversos territórios do País. A questão da produção perpassa, portanto, a esfera pública como um todo, considerando a ação estatal e das organizações da sociedade civil em parceria ou não com os governos.
Essas leituras da realidade, que tem como objetivo amparar as políticas setoriais e ampliar “a resolutividade – equidade e integralidade de ações” (Gomdim et all, 2008:4) do atendimento em cada área, chegando cada vez mais perto dos fatos para a tomada de decisão, representaram uma ruptura no modo de organização centralizador das políticas. No entanto, é dado que “as políticas e regulações públicas ainda tem dificuldades em operar com territórios das cidades para garantir acesso aos serviços, equipamentos e infraestrutura urbanas de qualidade pra todos os cidadãos e cidadãs” (Koga e Nakano: 104). Esse fato, certamente guarda relação com a qualidade do que vem sendo produzido como leitura das localidades.
Por isso nos perguntamos qual o sentido e a qualidade dos diagnósticos que vem sendo produzidos? As leituras dão conta do desenho das políticas, da necessidade das ações? Nos casos dos programas federais, os relatórios conseguem preservar o sentido de diagnóstico ou são apenas compilados de informações? Os diagnósticos que auxiliam a interpretação da realidade conseguem incorporar análises e discussões qualitativas, minuciosas e particulares sobre os fenômenos analisados?
A ideia de diagnóstico socioterritorial carece de uma definição conceitual precisa. Importado da Medicina, o conceito tem uma origem técnica e pressupõe, pelo próprio significado da palavra, o conhecimento de uma determinada circunstância para a posterior intervenção. É utilizado, assim, para denominar experiências de investigação da realidade social que possam melhor guiar ações sobre essa realidade.
Em um sentido, assim como outras pesquisas sociais, o diagnóstico socioterritorial é uma forma de conhecimento, descrição, análise e compreensão da realidade. Podemos entende-lo como método de investigação, composto por um corpo metodológico e teórico próprio que exige o afastamento do senso comum e uma postura científica, crítica e reflexiva já que o método científico exige o questionamento constante sobre a realidade social e os conhecimentos sobre ela produzidos (Simões et all, 2008).
A particularidade do diagnóstico frente a outras pesquisas sociais, sobretudo as de cunho acadêmico, reside na capacidade que deve ter de produzir um conhecimento estratégico voltado à ação, à intervenção. Tem um caráter de projeção para o futuro baseado na ideia de diagnosticar para planejar. E justamente em função desta característica, precisa ser muito mais do que uma compilação de dados e informações ou uma leitura extensa, densa e profunda sobre determinado fenômeno ou contexto. Isso porque deve ter a capacidade de evidenciar dinâmicas e mudanças apontando, ao mesmo tempo, as potencialidades e obstáculos para a intervenção em determinado contexto social espacial e temporal. Pensamos, portanto, em diagnóstico como parte de um conjunto de instrumentos de gestão que possa subsidiar as ações de intervenção social. Trata-se da capacidade de entender a realidade e agir sobre ela.
No entanto, se no universo médico o diagnóstico é sempre feito diante da apresentação de algum problema (sentido e percebido por meio de sintomas), a maneira como pensamos e entendemos a ideia de diagnóstico deve se aproximar mais de uma leitura da realidade do que propriamente o levantamento de suas enfermidades, seus problemas. O que é importante preservar é a capacidade dessa leitura de prover caminhos para a atuação nessa realidade.
Mas não se trata de uma leitura qualquer. Referimos-nos a informações qualificadas sobre os territórios capazes de revelar desigualdades, sutilezas, concretudes, que se aproximem da vida das pessoas. Leituras que não separem as medidas sociais das territoriais e que tratem o território como um plano de referência e não como um objeto do qual podemos fazer um inventário de características, variáveis e determinações ou como um recurso tecnológico para formulação de políticas (Telles, 2006)[3]. Nesse sentido, é preciso distinguir leituras espaciais (que hoje em dia apresentam ferramentas de análise cada vez mais desenvolvidas) das análises de território, ou seja, análises que sejam capazes de incorporar a dimensão da vida das pessoas, os fluxos, as relações, os processos.
Trata-se de romper com a distância gerada entre a demanda por um novo olhar sobre os territórios e o que vem sendo produzido enquanto informação sobre os mesmos. Para enfrentar esse descompasso é necessário, em primeiro lugar, reconhecer a importância da dimensão territorial para a compreensão das questões sociais. Em segundo lugar, mesmo que seja reconhecida a mutidimensionalidade da compreensão do território (como é exemplar a compreensão do cotidiano de indivíduos e grupos sociais), é importante aprofundar no estudo desta perspectiva ampliando esse conhecimento para formuladores e gestores de políticas sociais.
Estamos diante de um desafio contínuo, sobretudo porque tratamos de dimensões difíceis de serem captadas, ainda mais em sociedades marcadas pelo signo da mobilidade e da constante transformação. Para esse enfrentamento, para o qual não existem fórmulas prontas, sugerimos o constante questionamento de nossos olhares, e o rompimento com os sensos comuns que paralisam a construção de novas perspectivas. Assim, do ponto de vista da produção de diagnósticos socioterritoriais, baseados em Simões et all (2008), elencamos alguns princípios que rompem com as visões cristalizadas sobre diagnósticos e que devem nos nortear. Não se trata de uma receita, apenas da tarefa de iluminar alguns pontos importantes.
(i) Os diagnósticos devem apresentar uma estrutura e modelos específicos de acordo com a questão que pretendem entender. Muitas vezes vemos a reprodução de modelos e estruturas de diagnósticos que são independentes das questões que se pretendem diagnosticar. Estruturas prontas e que não estabelecem diálogo com o objetivo da investigação, acabam por engessar a forma de olhar e comprometem a capacidade de gerar análises apropriadas às questões específicas. O desenho do diagnóstico que apresentamos aqui, como veremos, procurou ao máximo partir dos pilares e conceitos do Bairro-escola e não de estruturas prontas de pesquisa que fossem alheias ao olhar necessário para dar conta dessa estratégia.
(ii) Com base nos objetivos a que se propõe, os diagnósticos devem buscar formas de ler o território próprias aos seus temas, evitando leituras fixas e prontas. Assim, as categorias de análise não devem ser estabelecidas somente em função da informação disponível: é necessário evitar a exclusão de dimensões que não podem ser quantificadas ou sobre as quais não existem dados. A busca de dados tampouco deve ocorrer antes de colocada a questão central do diagnóstico, já que os dados devem tentar traduzir aquilo que se deseja investigar. Um bom exemplo sobre essa questão é o tratamento de temas como a exclusão social – conceito multidimensional e relacionado à diversas esferas da vida social. Este é um conceito típico que não pode ser entendido simplesmente a partir de dados como os níveis de renda da população, associação muito comum nesse campo de análise. Se partirmos somente desse dado teremos uma visão enviesada e simplificada acerca deste fenômeno, já que duas pessoas com o mesmo nível de renda podem se encontrar em situações de vulnerabilidade ou inclusão/exclusão social muito distintas. Além de depender de uma série de outros fatores (é evidente que a exclusão não se refere somente à renda) o nível de exclusão da população não é um dado que se encontra de forma pura encontrado em indicadores e estatísticas, mas decorre de uma reflexão sobre o que se considera essa condição em um determinado contexto. Somente a partir de uma reflexão profunda sobre os significados da exclusão é que se pode ir atrás de informações que possam operacionalizar esses conceitos em estatísticas e dados das mais diversas fontes como acesso a bens e serviços públicos, condições de saúde, nível educacional, etc[4].
(iii) Os documentos resultantes de diagnósticos devem trazer análises e não somente reunir informações e dados sem fazer uma reflexão sobre o que estão expressando. É falsa a ideia de que diagnóstico é apenas um conjunto de informações sobre situações que se enumeram: é preciso criar análises sobre o que foi coletado, problematizando e refletindo sobre o conjunto de informações disponíveis.
(iv) As análises presentes nos diagnósticos devem conseguir estabelecer diálogos entre si. É muito comum que os resultados das pesquisas realizadas sejam apresentados de forma separada e setorizada, ou seja, os resultados sobre Demografia, por exemplo, aparecem separados dos resultados sobre Saúde, sem que entre eles haja qualquer tipo de diálogo. Sabemos que as questões sociais não acontecem de forma separada, mas estão totalmente interligadas, por isso, as leituras devem preservar ao máximo a transversalidade e a intersetorialidade. Além disso, as análises devem ser apresentadas tendo como ponto de partida as causas e efeitos dos fenômenos e não somente a partir de olhares sincrônicos (aquilo que se passa) ou diacrônicos (apenas a evolução do fenômeno).
(v) Os diagnósticos devem ir além de análises técnicas que não traduzem o que as pessoas entendem sobre suas questões ou territórios, ambiente em que vivem. Nesse sentido, as análises devem ser participativas porque ninguém melhor do que aquele que vive para dizer o que acontece em uma localidade. O desafio deve ser, portanto, o de propiciar ao máximo união entre dados técnicos e informações provenientes de processos participativos em que as pessoas possam contribuir para a leitura dos fenômenos aos quais estão envolvidas.
(vi) Um último elemento essencial é o de evitar que o resultado dos diagnósticos se tornem documentos fechados: um relatório arquivado deixa de ter utilidade. É importante que os resultados alcançados sejam abertos para transformação e enriquecimento por diversos atores que possam problematizar, questionar e ampliar as análises encontradas.
Esses princípios não são regras fechadas, mas orientaram o presente diagnóstico. Estruturamos esse documento com base nos mesmos procurando ao máximo produzir uma informação de qualidade de acordo com os objetivos propostos, que serão descritos a seguir.